sábado, 18 de novembro de 2023

Quando o consumidor morre, fica difícil achar alguém para pagar a conta

 Mortes em shows de música popular quase acabaram com algumas das mais importantes bandas de rock de todos os tempos. Os Rolling Stones, por exemplo, foram espicaçados e perseguidos depois do péssimo concerto de Altamont, na Califórnia (EUA), em dezembro de 1969. 

Mal organizado e praticamente sem segurança, o show reuniu 600 mil pessoas (estimativa), onde reinou a violência e um jovem negro foi espancado e morto na frente o palco.

Des anos depois, em Cincinnati (EUA), 11 pessoas morreram pisoteadas depois que a multidão na fila pensou que o show de The Who tinha começado - era apenas a passagem de som. A falta dessa informação e o péssimo trabalho de organização e segurança provocaram a tragédia. 

A banda só soube do ocorreu após o show, nos camarins, e o guitarrista Pete Townshend saiu do estádio decidido a acabar com a banda - questões financeiras e contratuais o demoveram temporariamente, da ideia.

Problemas parecidos ocorreram com o Pearl Jam, na Dinamarca, durante o festival de Rokilde. em 2000. nove pessoas morreram pisoteadas e 43 ficaram feridas durante o show da banda no palco principal em um tumulto até hoje nebuloso em sua origem. O grupo considerou parar de tocar por um tempo em razão da tragédia.

No Brasil, quem não se lembra das condições inacreditáveis que levaram à morte de  oito pessoas em8 de novembro de 1997 em um clube de Santo (SP)? Morreram após assistirem ao show do grupo Raimundos no ginásio precário. 

Os oito foram asfixiados e sofreram lesões múltiplas ao caírem de uma escada de cinco metros utilizada como única saída para quase seis mil espectadores. Os corrimãos instalados na estrutura cederam, o efeito manada empurrou o público e dezenas despencaram no chão, um sobre os outros. Estima-se mais de 60 feridos. O futuro da banda chegou a estar em jogo após o acidente.

Dá para elencar mais um monte de ocorrências semelhantes, com alto potencial de queimar reputações e colocar carreiras em risco. Não é isso o que vai ocorrer com a cantora pop americana Taylor Swift, por mais que repercussão que a morte da fã Ana Clara Benevides, de 23 anos, que passou mal no começo do show no estádio Engenhão, no Rio de Janeiro, e morreu depois no hospital, onde chegou com parada cardiorrespiratória.

Os cínicos de plantão vão dizer que que "demorou para acontecer" dadas as condições sempre insatisfatórias dos megasshows em grandes estádios brasileiros - tudo caro, banheiros de menos, proibições demais, infraestruturas médica e de segurança insuficientes, assistência ao consumidor capenga...

Os ingênuos vão dizer que é um absurdo demonizar a cantora e os organizadores por causa de "apenas uma morte", cuja causa ainda não foi "determinada", em "flagrante injustiça" - ainda que outras mil pessoas tenham passado mal por causa do forte calor no primeiro show.

Até há um fundo de sentido nesta "argumentação", mas a essência da questão permanece: como pode alguém morrer em um show de música pop sem que haja tumulto ou violência? Como a assistência médica não foi capaz de evitar o agravamento do caso? Como alguém pode morrer em um show?

O exemplo de Santos deveria er provocado discussões e  melhora nas condições dos megaespetáculos. Hoje as casas de shows de médio e grade portes de Brasil e Argentina estão entre as mais seguras do mundo - assim como têm as leis mais rígidas - depois que mais de 500 pessoas morreram em incêndios em boates. Só na boate Kiss, em Santa Maria (RS), foram 242 jovens mortos. tais rigores não existem nos megasshows.

A morte de Ana Clara Benevides, uma estudante de psicologia de Mato Grosso, provocou u show de demagogia e oportunismo de autoridades municipais, estaduais e federais. o Ministério da Justiça baixou rapidamente portaria alterando regras de segurança e saúde nos megasshows, obrigando o fornecimento gratuito de água seja quais forem as condições climáticas.

O lamentável governo fluminense, sempre perdido e correndo atrás dos problemas graves, pressionou pelo adiamento do segundo show quando já se sabia que o final de semana seria de calor extremo pelo menos cinco dias antes. No sábado, dia 18, os termômetros marcaram o recorde de 42,3ºC no Rio, com sensação térmica de 59ºC em alguns bairros.

Dois deputados federais, um do PSDB e outra do PSOL, se apressaram a dizer que vão propor leis federais mais rígidas de fiscalização aos megasshows e a obrigatoriedade de água gratuita nos eventos, além da permissão de entrada de guarda-chuvas e garrafas plásticas transparentes de água.

Na esteira do oportunismo, promotores públicos pelo Brasil afiam as garras para instaurar qualquer tipo de inquérito, assim como os Procons (órgãos de defesa do consumidor), entidades que apenas costuma reagir aos problemas, na verdade deveriam tentar evitá-los.

O de Uberlândia (MG), por exemplo, já se apressou em "abrir uma investigação contra o adiamento do segundo show de Taylor Swift no Rio", já que pelo menos 100 consumidores da cidade, que viajaram para ver a cantora, reclamaram que o adiamento os impossibilitará de permanecer até segunda-feira (20), data do shows remarcado. O Procon da cidade mineira tem jurisdição para atuar no Rio de Janeiro?

A questão é que foi necessária uma morte que pode ter relação com o calor extremo e assistência médica insuficiente para finalmente grandes problemas dos megaeventos fossem finalmente observados e, quem sabe, coibidos e punidos.

Não bastassem os preços muito alto dos ingressos, os consumidores são submetidos a inacreditáveis restrições impostas em nome da segurança - e da proteção das empresas concessionárias para manter a exclusividade da venda de sus produtos, como bebidas.

A falta de fornecimento gratuito de água, de infraestrutura decente de banheiros e de meios para se refrescar em eventos realizados em épocas de intenso calor são queixas recorrentes desde o Rock in Rio I, em janeiro de 1985. Todos os eventos grandes subsequentes, geralmente em estádios, apresentavam os mesmos problemas.

Até os anos 2000, muitos dos grandes shows eram realizados, em São Paulo, nos antigos e inadequados Pacaembu, Morumbi, Parque Antártica e Ibirapuera. Em relação aos festivais europeus, no toante á qualidade de infraestrutura, estivemos na pré-história. Melhorou um pouco neste século, mas não muito.

O principal local para megaeventos na capital paulista, já há algum tempo, é o autódromo de Interlagos, subutilizado e hoje encravado em um bairro populoso e com ruas estreitas e sem grande estrutura. 

Recebe festivas diversos e organizado por empresas diferentes, mas as queixas sobre a infraestrutura e as restrições são as mesmas e recorrentes. 

Ao se privilegiar as "necessidades e exclusividades" de patrocinadores e concessionários, que supostamente "investiram" muito em um grande evento, rompe-se a cumplicidade entre cliente e prestador de serviços, transformando o entretenimento em experiência amarga. 

consumidor é maltratado em algumas situações importantes durante o evento, a começar pela excrescência da cobrança de "taxa de conveniência" na compra do ingresso, quando, na verdade, não há conveniência alguma.

Deixando de lado a demagogia e os oportunismos de lado, que a morte de Ana Clara desencadeie uma onda de indignação contra as condições abusivas nos shows e megasshows e torne o consumidor de shows brasileiro mais consciente e mais exigente, cobrando inclusive os artistas, que são tão responsáveis quando os promotores de shows. São eles que são os chamarizes e colocam seus rostos para vender ingressos muito caros e oferecer, em parcela expressiva dos eventos, ~situações bem desagradáveis aos consumidores.

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