quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Angra ressurge revigorado e empolgado no ótimo álbum 'Cyclse of Pain'

 Estabilidade costuma aumentar a confiança e a estimular a inovação e a criatividade no mio artístico, e a estabilidade nunca foi tão desejada pela banda brasileira Angra. Desde que Kiko Loureiro saiu para entrar no Megadeth a banda mantém a mesma formação e o melhor momento desde que o italiano Fabio Lione se firmou como vocalista principal. 

Só há motivos para comemorar e "Cycles of Pain", o terceiro trabalho desta era, é o melhor retrato da estabilidade conseguida - e é também o melhor cartão de visitas que o angra poderia mostrar nas celebrações dos 30 anos de carreira - agora 31, empurrados ela pandemia de covid-19.

O recém-lançado álbum expõe todo o bom gosto revelado em "OMNI", de 2018, e consegue ir além, diversificado o som de forma mais ousada e corajosa, seja nos arranjos ou nas composições ainda mais elaboradas. 

Muito se falou na necessidade de o Angra superar o ótimo "OMNI" em trabalhos futuros, mas esse conceito de superação só existe na mente competitiva de fãs ansiosos por conteúdos inédito. 

Um CD não precisa ser melhor do que outro e nem precisa superar o passado. Precisa ser bom, emocionante e agradável. "Cycles of Pain" cumpre essa papel de forma completa.

Confiantes e descontraídos, os músicos do quinteto fizeram um grande álbum, em que a diversidade e a inteligência são as principais características, onde o heavy metal predomina, mas há a inserção de inúmeras influências e elementos que traduzem a sede de inovação. Não há nada revolucionário, mas ha muita coisa diferente.

Para os saudosistas dos tempos de power metal na velocidade da luz, há a emblemática "Ride Into the Storm", um dos singles adiantados e que faz uma conexão com o passado distante - é rápida, forte e tradicional.

Já os mais sedentos por surpresas vão se deliciar com os ares progressivos de canções maravilhosas como "Faithless Sanctuary" e "Here in the Now", que brincam com os ares progressivos e elementos de música brasileira, tudo embalado em um clima de Dream Theater na estrutura básica das canções.

E então temos Fabio Lione completamente à vontade com a musicalidade brasileira da segunda canção, totalmente ambientado e se sentindo integrado ao DNA da banda. Já são dez anos no Angra, falando cada vez melhor o português e incorporando alguns dos maneirismos nacionais. Alguém ainda tem dúvidas a respeito de sua presença na banda?

Ele e os guitarristas Marcelo Barbosa e Rafael Bittencourt brilham na faixa-título, um primor de metal progressivo bem construído e lastreado por uma letra forte e, ao mesmo tempo, sensível.

No terreno pantanoso das misturas de estilos com a participação de artistas de fora do metal vem um improvável acerto: o cantor pernambucano Lenine impõe respeito, suavidade e estilo na delicada "Vida Seca". 

Na primeira parte da canção, em português, ele imprime uma sutileza emocionante, que casa com a segunda parte mais dramática, em inglês, na soberba interpretação de Lione sobre arranjos notáveis de guitarra.

"Generation Warriors" é um belo tributo ao Angra de 20 ano atrás em um power metal que fez a fama internacional da banda e que nos lembra do que o metal nacional produziu de melhor ao longo de sua história. 

Há o indefectível momento épico, é claro, com o belo encerramento de ares erudito-operístico em "Tears of Blood", onde Fabio Lione desfila toda a sua classe e seu vasto repertório o lado da impressionante cantora americana Amanda Somerville (Trillium, Kiske-Somerille).

Aparentemente desolado, o dueto  faz todo o sentido em uma obra que pretende ser plural e condensar 30 anos de história e influências. É um marco na trajetória discográfica da banda por se aventurar no perigoso caminho da inovação - quando é muito fácil escorregar e cair na autoindulgência. 

Experientes, os músicos fugiram da armadilha e mantiveram a competência, transformando a canção em um encerramento condizente com um álbum extremamente agradável e, até certo ponto, surpreendente, principalmente quando observamos que contém também músicas densas e muito pesadas, como "Gods of War", uma contundente critica sociopolítica aos "donos do mundo".

Os momentos mais suaves ficam pelas duas partes de "Tides o Change", que incorporam elementos folk e arranjos mais sóbrios, que contrastam com a agressividade calculada de "Dead Man on Display", possivelmente a mais pesada do trabalho.

Com a irrepreensível participação do norte-americano Dennis Ward na produção, Cycles of Pain" é um produto adequado de sua era e apresenta como e o metal pode extrapolar seus limites apostando na inovação e na inteligência, tudo com coragem, mas também com foco e organização. 

Em um ano em que há fortíssima concorrência dentro do rock brasileiro, "Cycles of Pain" lidera as apostas de melhor trabalho brasileiro em 2023.

Entre as várias declarações elogiosas ao novo trabalho do Angra, uma se destaca, contida no material de divulgação para a prensa: "o décimo álbum é uma marcha triunfante, um renascimento do furioso metal brasileiro, da expertise no progressivo e de músicas majestosas". E é isso, pois se trata dde um renascimento após cinco anos de distância de "OMNI", um álbum pré-pandemia que rendeu as melhores críticas e uma quase interminável turnê mundial.

Escrito principalmente por Rafael Bittencourt (guitarra) e Felipe Andreoli (baixo) - além de Lione, fazem parte o guitarrista Marcelo Barbosa  o baterista Bruno Valverdde - e produzido por Dennis Ward, a equipe se retirou para o interior do Brasil por algumas semanas antes de entrar no Sonastério Studio, seguido pelo Elephant Office Studio, Greenhouse Studios e os estúdios individuais dos membros.  

Nas várias entrevistas que concedeu nos últimos dis meses, Rafael Bittencourt destacou a resiliência do Angra em tempos tão duros e difíceis para o mundo artístico e, de maneira geral, para toda a sociedade. 

"O disco 'Cycles Of Pain' é um álbum monstruoso, nascido do fogo e da dor de tempos incertos. É um álbum muito especial para nós por várias razões", analisa Bittencourt. "Nos últimos cinco anos, experimentamos muita dor, desafios, frustrações, glórias e sucessos em uma montanha-russa de emoções que se tornou um grande caldeirão de temas e inspirações." 

A contextualização se faz necessária: o pai de Bittencourt faleceu, seguido pelo membro fundador Andre Matos. E ainda teve a pandemia de covid. "Estávamos isolados, atormentados, lidando com a sombra da doença e da morte diariamente. Hoje até parece surreal lembrar de tudo pelo que passamos. Como resultado, este é um álbum denso de experiência e dor acumulada", resume o guitarrista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário