segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A música do diabo chega ao Brasil: uma história decente sobre Robert Johnson

 Eugenio Martins Junior - do blog Mannish Blog

Em uma noite sem luar um homem caminha silencioso por uma estrada escura de terra que divide duas grandes fazendas de algodão no Mississippi, sul dos Estados Unidos. O ar está tão seco e abafado e sua testa está tão suada que até o chapéu incomoda.

O barulho do trem corta o silêncio da noite a quilômetros dali. O homem chega ao entroncamento entre os caminhos, senta em uma pedra e espera.

Poucos se atreveriam estar ali uma hora daquelas. Ainda mais sendo um negro. Caso fosse descoberto, certamente seria linchado pelo simples fato de estar sozinho naqueles cafundós.

Entre um gole e outro de moonshine ele adormece. Acorda. Espera. De repente sente um frio na espinha, seu corpo todo desperta e ele vê um vulto se aproximando. 

Assusta-se e se culpa por não ter notado a presença antes, pois tinha a visão plena dos caminhos que se cruzavam ali onde ele estava. Pensa em pegar a faca que usa para deslizar nas cordas do instrumento, mas desiste, o vulto está muito perto.

O jovem músico sabe quem é aquela entidade, ele está ali para esse encontro. O homem é Robert Johnson e a presença sinistra é o próprio diabo.

Robert entrega seu violão e a entidade afina o instrumento como ele nunca tinha ouvido antes. Inesperadamente, uma lua vermelha aparece por trás das nuvens e o diabo fala com Robert sem abrir a boca: “Se você pegar de volta esse instrumento você terá total domínio sobre ele, mas a sua alma será minha”. Robert hesita, mas toma o instrumento das mãos do tinhoso e parte madrugada a dentro.

Meses depois reaparece nas juke joints do Mississippi com músicas como "Hellhound on My Trail", "Me And The Devil Blues", "If I Had Possession Over Judgment Day" e "Cross Road Blues", deixando todos assombrados com sua técnica e seu comportamento.

Essa história é muito boa pra ser desperdiçada e, se dura até hoje, ainda deve funcionar para vender discos. Muitos discos. Mas acreditar nela é a mesma coisa do que acreditar que no inferno inventado pelos pastores das igrejas pentecostais brasileiras a dívida pelo livramento pode ser saudada no PIX ou no cartão. A diferença? O diabo entrega o que promete.

Falando seriamente, acaba de sair no Brasil, pela editora Belas Artes, o livro sobre a vida do lendário Robert Johnson, "A Música do Diabo". Apesar do nome, os autores Bruce Conforth e Gayle Dean Wardlow se esforçam para liquidar de vez com o mito da encruzilhada.

O esforço é tanto que os autores contrapõem-se até a Sam Charters e Peter Guralnick, dois conhecidos pesquisadores do blues dos Estados Unidos.

Bruce Conforth, PhD, é autor premiado por "African American Folksong and American Cultural Politics" e historiador residente na The Robert Johnson Blues Foundatio. Também é curador e fundador do Rock and Roll Hall of Fame and Museum, além de músico estudante de guitarra do Rev. Gary Davis.

Para ele, transformar a dura vida de Robert Johnson em folclore chega a ser uma afronta às histórias de muitos músicos afro-americanos que vagaram pelo sul do país, criando o blues no começo do século passado.

Conforth e Gayle esmiuçaram documentos antigos durante décadas até chegar às conclusões apresentadas na obra que agora chega ao Brasil. Conforth também foi uma das principais fontes consultadas no documentário exibido pela Netflix sobre a vida de Robert Johnson.

Os autores conversaram com contemporâneos de Robert Johnson até descobrir como ele desenvolveu a técnica musical que revolucionou a música do século XX.

A importância desse relato transcende as fronteiras de tempo e espaço. Em 2022 ainda estamos lendo sobre Robert Johnson e falando sobre ele. E mais, ouvindo sua música. Lançar luz sobre a sua história foi o que fez Bruce Conforth. Pela primeira vez ele fala ao Brasil sobre o seu livro.  


Eugênio Martins Jr – Como foi sua infância musical e quando descobriu o blues e Robert Johnson.

Bruce Conforth - Cresci durante o renascimento do folk e blues que estava acontecendo em Greenwich Village, em Nova York, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Comecei a frequentar no início da adolescência o famoso Izzy Young's Folklore Center na MacDougall Street, em Greenwich Village. Foi lá, e no Gaslight Cafe que ficava bem ao lado, que conheci pessoas como Son House, Mississippi John Hurt e outros. Tive a sorte de ter aulas de guitarra com Reverend Gary Davis. Então, desde muito jovem, tive um caso de amor com o blues acústico e tive a sorte de conhecer muitas das pessoas que o criaram.

EM – Qual a importância do blues e do resgate da história de Robert Johnson para a cultura americana em 2022?

BC - O blues acústico original é mais importante do que nunca porque há tantos músicos brancos que se tornaram estrelas do blues rock e tiraram a música de sua importância original. O blues original foi a voz da experiência negra na América e, portanto, tem mais a dizer sobre nossa cultura do que a maioria das outras formas musicais contemporâneas. Acho que foi incrivelmente importante resgatar a história de Robert Johnson, sua história verdadeira, apesar de todos os mitos que foram contados sobre ele. Porque sua verdadeira história fala sobre a cultura afro-americana, a história das relações raciais no século 20 e como um jovem negro na década de 1930 poderia criar seu próprio meio de vida.

EM – Como você vê a preservação da memória do blues nos Estados Unidos?

BC - Como disse antes, acho que a preservação do black blues original, acústico, é mais importante do que nunca porque corre o risco de se perder. Músicos brancos dominaram tanto o blues contemporâneo que provavelmente há muito poucos "fãs de blues" que sabem quem foi Mississippi John Hurt, ou quem foi Skip James, ou Henry Thomas, ou Charley Patton, ou Memphis Minnie, ou Ma Rainey. E se eles sabem sobre Robert Johnson, eles só conhecem o mito bobo sobre ele ter supostamente vendido sua alma para o diabo na encruzilhada. Eles realmente não entendem o que era aquela música ou o que era aquela parte da história americana.

EM - Seu livro acaba de ser lançado no Brasil e já está fazendo barulho aqui entre os fãs de blues. Há uma carência desse tipo de leitura no Brasil. Você sabia que há uma forte cena de blues aqui?

BC - Eu realmente não fazia ideia de que havia uma grande cena de blues no Brasil, mas estou muito feliz em ouvir isso. A grande maioria dos africanos que foram trazidos para a América do Norte como escravos foram primeiro para o Brasil ou para o Caribe, então, em um sentido muito real, o Brasil é uma grande parte da história do blues americano.

EM – Seu livro levou algumas décadas para ser concluído e quebra alguns paradigmas em relação a Robert Johnson. Você desafia alguns pesquisadores no sentido de desmistificar sua história. Eu gostaria que você falasse sobre isso.

BC - Quando o livro estava sendo finalizado, eu costumava dizer que basicamente tudo o que pensávamos saber sobre Robert Johnson estava errado, então sim, concordo que acho que o livro quebrou vários paradigmas e desafiou praticamente todas as pesquisas que haviam sido feitas anteriormente sobre Robert Johnson. Ficarei feliz em falar mais com você sobre isso.

EM - No seu ponto de vista, ainda há muitas histórias para serem contadas?

BC - Tenho certeza de que há muitas histórias semelhantes que precisam ser contadas, mas o tempo está ficando curto - praticamente não restou ninguém vivo que estava presente quando tudo isso estava acontecendo, por isso é imperativo que documentemos o que pudermos antes que acabe. Também é importante ouvirmos os jovens artistas de blues negros para ouvir sua história e como eles se veem em relação à história do blues. Por exemplo: quão importante é para eles permanecerem fiéis à tradição?

EM - Viajando pelo interior do Mississippi, por todas aquelas cidades descritas por você, hoje ainda podemos encontrar o blues tradicional como nos primórdios? Depois de 100 anos de história?

BC - Infelizmente há muito poucos lugares onde o blues original ainda continua. Belzonia, Mississippi ainda é uma das poucas exceções onde o blues tradicional ainda vive. É onde Jimmy "Duck" Holmes ainda tem sua juke joint Blue Front Cafe e ainda toca na tradição do blues como Skip James. Existem alguns jovens músicos negros como Christone "Kingfish" Ingram, Blind Boy Paxton, Marquise Knox e Jontavious Willis que mantém esse sentimento vivo, mas infelizmente eles são a exceção.

EM – Nos anos 60 houve um revival, que muitos gostam de chamar de “redescobrimento” do blues, e muitos artistas como Skip James, Son House, Johnny Shines e outros. Robert Johnson foi um desses? Eu gostaria que você falasse sobre isso.

BC - Robert Johnson foi um dos primeiros músicos de blues acústico que ouvimos por causa do álbum "Robert Johnson King of the Delta Blues Singers" que saiu em 1961, alguns anos antes de qualquer um deles.

EM – Robert Johnson é creditado com uma aura de mistério, mas na verdade muitos artistas se envolveram em histórias sinistras: Leadbelly foi preso por assassinato, Skip James era um contrabandista, Son House também se envolveu em crimes. O fato é que a vida desses homens não foi fácil. O ambiente era hostil aos bluesmen.

BC - Você está certo, mas o ambiente era hostil aos homens negros em geral. Para um homem negro do sul dos Estados Unidos, o ambiente era realmente muito ameaçador e desumanizante. É por isso que tantas dessas pessoas se tornaram músicos de Blues, porque eles queriam tentar escapar da vida difícil de ser um meeiro ou apenas outra forma de propriedade.

EM – O veterano Tail Dragger disse que os jovens negros nos Estados Unidos não estão mais interessados no blues. Eles só querem fazer rap hoje em dia. Você concorda?

BC - Eu nem me atreveria a falar pelos jovens negros. Como eu disse, o blues está em um estado lastimável e foi cooptado principalmente por músicos brancos, então se os jovens negros se afastassem dele porque não queriam ouvir músicos brancos tocando suas músicas, eu não os culparia. Mas realmente não posso responder a essa pergunta.

EM – Agora uma provocação. Podemos dizer que Robert Johnson, Muddy Waters e Jimi Hendrix foram os três inovadores do blues. Os três divisores. Com base nessas informações, podemos dizer que o próximo inovador está prestes a aparecer?

BC - Essa é uma pergunta interessante, mas acho que a resposta é não. É um grande equívoco pensar que a cultura é sequencial ou sempre se baseia em si mesma. Na verdade, a cultura pode se mover para o lado, para trás ou para algum lugar que nunca esperávamos, então realmente não temos ideia de qual será a próxima "inovação". A única coisa que podemos ter certeza é que haverá um.

 

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