quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Uma rápida contribuição de Ed Motta para a nossa cultura

Fugindo do clima melancólico da pandemia de covid-19, Ed Motta decidiu comentar parte de sua obra nas redes sociais em textos bacanas e inteligentes. É uma delícia ver seus comentários sobre suas influências e o modo com gravou alguns álbuns bem importantes. Nesta semana ela abordou os discos "Aystelum" e "Dwitza", e deu uma rápida aula de composição, gravação e interpretação. Não há como não reverenciar um artista completo e raro como Ed Motta.


Ed Motta (FOTO: DIVULGAÇÃO)


Depois do sucesso de "Tem Espaço Na Van" e a ótima divulgação que a Trama fez para o "Poptical", o que se esperava era que eu repetisse o formato, mas como sempre em meu toca disco tem de tudo, de um reggae simples, até música serialista... 

Era o que se esperava, mas não da Trama, que sempre me deu total liberdade, nunca existiu conversa sobre o quê, como, com quem, ou aonde iria gravar.

Desde "Dwitza" eu pesquisava a fundo a música dos selos de jazz independentes afro centristas, que levavam a estética do John Coltrane para os anos 70. Ao lado de uma música libertária eu estava também fascinado e estudando os compositores da Broadway, sobretudo os judeus. Negros e judeus o ápice da música que eu amo.

Como "Dwitza", "Aystelum" foi uma palavra inventada na minha cabeça. Assim que consegui o nome fui para a busca na internet, a palavra não existia. Perfeito, era o que eu precisava.

Gravamos bases, metais, solos, todos tocando juntos no mesmo take, como antigamente, os músicos colocaram grande entrega emocional nas gravações, soa tudo fervendo, temas como "Balendoah", "Awunism". 

Muitos nomes de temas desde "Dwitza", também inventados, foram "Malumbulo", "Amalgasantos".
Uma honra imensa ter duas músicas na estética do samba letrados pelo genial Nei Lopes. 

Uma delas, "Samba Azul", faço um dueto com a Alcione, um timbre de voz que não existe, único, ela cantando no estúdio todo mundo sai voando, força da natureza. 

Em "Pharmácias", eu quis ambientar um tema bem influenciado pela música brasileira tradicional, com instrumentos eletro-acústicos, sem o violão de náilon de sempre, não era o tradicional nem o pós moderno eletrônico.

Na faixa-título, Renato Massa que é um esteta da bateria, detalhista, realiza de forma brilhante o que eu imaginava para o tema, a bateria de forma melódica, e não apenas a função de ritmo, tempo, groove, bateria e qualquer outro instrumento tem mais possibilidades do que as impostas pelo mercado, e o senso comum, que é abastecido e controlado pelo mesmo mercado, o círculo vicioso.

"Aystelum" namorava firme o spiritual jazz que nos últimos anos tem recebido atenção mundialmente de uma nova audiência. Em "Balendoah" aparece uma formação com dois baixos acústicos, duas baterias, dois pianos, sopros e um coro de vozes, o idioma do jazz afro centrista.

Um fato curioso em "Aystelum" foi como escolhi e encontrei o saxofonista chileno Andrés Perez. Estava em Santiago para um show do "Poptical" que foi lançado e muito bem recebido no Chile e Argentina.

 Eu procurava desesperadamente um saxofonista tenor com a sonoridade do Coltrane, J.Henderson, conhecimento alto das escalas, e também de efeitos que o sax pode fazer, harmônicos etc. 

Estava difícil encontrar alguém com esse som específico que eu procurava do sax, e que teria protagonismo fundamental no disco. Fui num lançamento de uma revista de jazz no Chile, porque muitos comentavam você vai encontrar o saxofonista hoje no show da revista. 

O saxofonista era excelente mas não tinha esse som que na verdade foi esquecido também por motivos mercadológicos, menos trabalhos para o músico se não tocar com o som do gosto vigente. Dali a pouco na TV do bar um anúncio de um show da semana seguinte, tinha um cara que a agressividade do sax derretia a TV! 

Eu pedi na minha ansiedade clássica: preciso falar com ele hoje por favor. Nos encontramos, jantamos com a banda, e o convidei para não só gravar o disco, como depois ingressar nos poucos shows que fizemos. 

Mestre Paulinho Guitarra a colaboração de luxo em tantos discos, junto com sua mulher Jane Lapa tiveram a generosidade em hospedar Andrés com eles, o que sou eternamente grato.

Ao lado do spiritual jazz, samba, o desdobramento prazeroso e extremamente trabalhoso desse disco foi gravar a prévia de "7 - O Musical", que eu faria mais composições para estréia no teatro. 

Jota Moraes músico imenso, e colaborador desde "Entre e Ouça" fez um arranjo de sopros e cordas que sempre me faz chorar. Esses temas eu queria que fossem interpretados por atores/cantores, só fiz o arranjo de base.

Edna Lopes filmou cada segundo de "Aystelum", precisamos encontrar essas fitas feitas numa câmera da época e editar, são muitas. Edna criou e desenhou minha capa predileta da discografia, existia uma camiseta na época.

Com "Aystelum" fiz minha primeira tour européia, digo fazer mais de dez shows pelo menos, antes eu era convidado para no máximo quatro shows e voltava. 

No Brasil temporadas lotadas de um mês no saudoso Mistura Fina no RJ, e em SP o Sesc sempre junto, na alegria e na tristeza, em tudo que faço até hoje.

"Aystelum" foi a primeira vez que tive a estranha sensação de não conseguir levar o show para nenhuma cidade do Brasil, porque se o show de "Dwitza" era radical para muitos, "Aystelum" corria mais riscos, porque tinha elementos de free jazz no show, tensão e relaxamento, mas por ironia e cinismo o bis que escolhi era um cover pop, "Ride Like The Wind", do Christopher Cross.

Depois de espetáculo denso que tinha a concentração de uma missa, entrava um AOR radiofônico que musicalmente me interessava igual, e uma forma de sinalizar que eu não vestiria nenhuma camisa, amarra estética a partir dali.

"Aystelum" e "Dwitza" tem a bênção de um santo protetor na minha vida.

Muitos caminhos

Depois de conseguir gravar uma série de discos (a partir de Dwitza) que honravam minha existência, e meu compromisso com a música, eu estava pleno e extremamente grato para com as possibilidades conquistadas na discografia. 

Porém, financeiramente, vivendo sempre sem saber como pago as contas do mês seguinte, e ao me aproximar dos 40 anos, me preocupava muito viver eternamente na corda bamba.

A única solução possível para uma tentativa de uma vida mais estável financeiramente, era que eu mesmo colocasse o revólver na minha cabeça, tentando fazer uma espécie de terceiro "Manual Prático", para tocar no rádio, ganhar dinheiro etc. 

Mas eu já não conseguia fazer uma música com poucos acordes, eu estava crente que Piquenique seria sucesso popular imenso, mas aquelas composições eram uma ode à música radiofônica de outra época.

Ao contrário do primeiro "Manual Prático", a gestão de "Piquenique" foi de grande leveza, ter o Silvera como co-produtor foi ótimo principalmente por presenciar o talento gigante dele no estúdio, que tem grande facilidade de tocar todos os instrumentos num padrão Robson Jorge de excelência, gênio.

Uma música do Charlie Wilson (Gap Band) “There Goes My Baby” tocava muito no meu iPod nas viagens, essa música tem uma dose imensa de felicidade que influenciou o conceito de "Piquenique", e o curioso é que tem a tal da bateria eletrônica que eu tanto implico, mas colocada de forma mais limpa, sem os barulhinhos de loops que me irritam muito. 

Silvera sabe programar a bateria assim, com acento de baterista, a máquina precisa de um grande músico operando para não ter sotaque de máquina e sim de música.

Disco gravado e mixado na minha casa, o que passei a fazer sempre, trabalhar num estúdio simples mas com tempo infinito para burilar exaustivamente cada detalhe.

Um dos pontos altos do disco é meu dueto com a Maria Rita em “A Turma Da Pilantragem” que fiz inspirado pelo Burt Bacharach com as palmas dos discos de Chris Montez, influência direta do som da Pilantragem no Brasil. 

Maria Rita no estúdio é uma cantora de jazz, uma precisão absurda, gravamos juntos as vozes, eu fiquei impressionado de como ela é musicalmente imensa, um dia maravilhoso esse.

Edna e eu começamos a fazer a letra da "Pilantragem", de brincadeira depois de uma pizza com vinho, no dia seguinte era certeza que tínhamos que fazer todas as letras assim. 

Existia uma tentativa minha em comungar esteticamente com algo mais comercial, radiofônico, mas a quantidade de verdade e felicidade imprimidas no disco, parecem não combinar com o peso nefasto da infelicidade, da frustração que na minha vida ironicamente apareciam com cheques de quantias mais significativas.

A Trama para tristeza de muitos encerrou as atividades, e Piquenique foi abaixo do esperado comercialmente.

Comecei a me estruturar para fazer um disco independente, com meu selo Dwitza Music que seria "AOR", um dos melhores que gravei.

"AOR" vai sair nesta sexta-feira (15) em versão HD (24bit/192kHz) no Tidal, Qobuz, Amazon HD, o som ficou absurdo, o disco mais bem gravado e mixado da minha discografia.
 

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