Roberto Capisano Filho*
No começo de 1982, eu era um adolescente de 13 anos que só queria saber de jogar futebol e tinha como única preocupação passar de ano na escola. Até o dia em que meu primo, um ano mais velho, me mostrou alguns discos – sim, na longínqua década de 80, falávamos disco porque ouvíamos álbuns em vinil, lado A e lado B. A banda dos discos que ele me mostrou? Kiss. A partir daquele momento tudo mudou literalmente. Minha vida mudou.
Já fazia um tempo que eu vinha dando mais atenção para música, meio sem rumo, já que minhas principais fontes de informação eram o rádio e a TV que, no geral, estavam longe do rock. A onda disco era um passado recente e os embalos de sábado à noite com John Travolta e Bee Gees ainda ecoavam. Sucesso no dial eram coisas como Dalto, que cantava que se chegasse “muito estranho era para deixar a água no corpo para lembrar nosso banho” (?), Blitz e sua porção de batata frita porque “você não soube me amar” e Air Supply com a melosa Even The Nights Are Better (minhas noites e meus dias jamais ficariam melhores ouvindo essa música). Eu não me identificava com absolutamente nada daquilo.
O Kiss veio como uma revolução na minha cabeça. Não lembro exatamente quais os primeiros discos que meu primo me apresentou; acho que foram The Elder, o mais recente do Kiss à época, Destroyer (o melhor da discografia na minha opinião) e o solo de Gene Simmons. Ao ouvir aquilo eu fiquei maluco! Então existia um som como aquele! Sensacional! Eu havia encontrado a música que estava procurando! Foi uma avalanche sonora. E para completar, havia o visual único do Kiss, diferente de tudo, hipnotizante! A mágica começava ali para mim!
O Kiss não só me arrebatou de primeira como me abriu as portas para um mundo novo de bandas: Van Halen, Deep Purple, Rush, Def Leppard, Judas Priest, Iron Maiden, Motorhead, Black Sabbath, Led Zeppelin e tantas outras. Foi um mergulho sem volta no rock, principalmente hard rock e heavy metal.
Fiz amizade com pessoas que também curtiam esse tipo de som, passei a frequentar lugares como a loja de discos Woodstock (ainda no primeiro endereço dela, na Rua José Bonifácio, centro de São Paulo), a Galeria do Rock, que naqueles dias chamávamos de galeria apenas, Rainbow Bar, no bairro do Jabaquara, Carbono 14, no Bixiga, além de bater cartão nos shows das bandas locais de heavy metal como Vírus (minha preferida), Centúrias, Cérbero, Harppia etc.
Jogar bola? Não mais. O Kiss havia me transformado em outra pessoa: me deu uma personalidade musical, uma tribo para eu pertencer. Comecei a deixar o cabelo crescer, resolvi tocar bateria e montar banda (como não poderia ser diferente, Eric Carr foi uma das minhas primeiras inspirações no instrumento).
Em 1983, o sonho se realizava. Kiss no estádio do Morumbi! Fantástico! Meus ídolos estariam na minha frente! Nunca vou esquecer como minhas mãos tremiam quando peguei o ingresso!
Fiz um plantão no hotel Hilton, onde o Kiss se hospedou, e consegui um autógrafo do Eric quando ele chegou e desceu do carro na rampa da garagem. Carregado de sacolas de compras, ele parou e atendeu a molecada que se aglomerara por ali.
Conto tudo isso para dar uma ideia do impacto do Kiss em mim. Eu poderia escrever páginas sobre episódios da minha vida como fã da banda, mas não é o caso.
O ponto aonde quero chegar é que, em 2 de dezembro de 2023, após 50 anos de Kiss e cerca de 41 anos depois do meu primeiro contato com a banda, o último show.
A End of The Road alcançava sua derradeira data. Por mais que isso já estivesse programado, quando o dia chegou a sensação foi estranha. Saber que o Kiss nunca mais subiria no palco me trouxe um vazio gigante. O melhor show do planeta não iria mais acontecer depois disso. Eu não teria mais a oportunidade de ver e ouvir ao vivo quem fez a trilha sonora da minha vida. Depois do último acorde de Rock and Roll All Nite de 2 de dezembro de 2023, o maior espetáculo de rock da Terra iria se tornar passado.
Pelo pay per view, assisti à transmissão do ato final realizado no Madison Square Garden, em Nova York. Não poderia de jeito nenhum deixar de acompanhar.
O setlist foi o mesmo tocado no Monsters of Rock no Allianz Parque este ano. Já no visual, de diferente, notei uma fileira de luzes entre a bateria e a frente do palco e uma iluminação azul, que formava uma espécie de grade em torno no palco 2, onde Paul Stanley cantou Love Gun, I Was Made for Lovin’ You e o início de Black Diamond.
Paul mencionou algumas vezes a ligação da banda com Nova York, que tudo começou na cidade e lá terminava. Contou em quem 1972 levou pessoas no seu táxi para verem Elvis Presley no Madison Square Garden e que um dia ele também tocaria naquele palco, o que ocorreu pela primeira vez em 1978.
O show se aproximava do fim quando teve seu momento mais emocionante. Após Beth, enquanto os quatro estavam à frente do palco jogando baquetas para o público, Gene e Tommy Thayer foram às lágrimas.
Nessa hora começou a bater aquela sensação estranha de novo. Durante o transcorrer do show, estava tudo bem. Mas ver os caras chorando fez a ficha cair de vez: está terminando, dentro de alguns minutos será o fim. Não vamos mais ter a inigualável abertura de show com Gene, Paul e Tommy vindo do alto e descendo em plataformas até alcançar o palco, a bateria e Eric Singer se elevando, explosões, Gene cuspindo fogo e sangue, Paul na tirolesa, Tommy dando “tiros” da guitarra e todas aquelas músicas fantásticas sendo tocadas diante dos nossos olhos.
Na sequência, vieram Do You Love Me e Rock and Roll All Nite. Mais explosões, luzes, chuva de papel picado, balões, Gene, Eric e Tommy são elevados nas plataformas. Paul quebra a guitarra e faz o anúncio: o fim dessa estrada é o começo de outra. “Nós nos vemos nos seus sonhos, nós os amamos, boa noite”, finalizou. A apoteose se completa. O palco é totalmente tomado por fumaça branca. O Kiss sai de cena. Acabou.
No PA, como de costume, começa God Gave Rock and Roll To You. A fumaça se dissipa e surgem no telão avatares dos integrantes simulando tocar a música. Uma última explosão, os rostos dos avatares congelados na tela, o logo do Kiss e a frase “A new era begins” (uma nova era começa, em tradução livre). O que será isso exatamente? Temos de esperar para ver o que vem por aí.
Era de conhecimento geral que os ex-integrantes não participariam do último show. Mas confesso que tinha um mínimo de esperança de que Gene e Paul decidissem surpreender a todos, fizessem um acordo com os ex-companheiros e Ace Frehley, Peter Criss, Bruce Kulick e Vinnie Vincent aparecessem no palco em algum momento. Não aconteceu. Nenhuma menção a eles nem aos que já não estão mais por aqui, Eric Carr e Mark St. John.
Entendo que fãs discordem de alguns rumos que o Kiss tomou e de decisões de Paul e Gene.
Porém, nessa reta final, me recuso a apontar o dedo para eles e reclamar de qualquer coisa. Eu só quero celebrar a existência da banda que tanta alegria e música boa me deu. Não estou nem aí se a voz do Paul não é mais a mesma, se eles não se movimentam mais no palco como antes, se o setlist praticamente não varia. Nesses últimos shows, eu só quis ter a oportunidade de ver de novo os caras que são como super-heróis para mim.
Na minha cabeça, o Kiss sempre foi algo totalmente diferente de tudo; sempre foi especial, esteve no patamar mais alto, o número um; depois vêm todas as outras bandas. Eu gostaria de ter conhecido o Kiss antes de 1982, assim poderia ter começado a curtir há mais tempo e ter presenciado o lançamento de mais álbuns. Ainda bem que a obra e o legado do Kiss são eternos.
Para mim, a End of The Road representou a oportunidade para comemorar a volta olímpica dos campeões e poder aplaudir de pé, pela última vez, a banda mais legal que já existiu.
Meu desejo era ficar frente a frente com eles (todos os integrantes) e agradecer. Como não vai acontecer, aqui vai.
Muito obrigado, Kiss, pela música e shows que vocês deram ao mundo durante esses 50 anos. Vocês fizeram a vida ser muito melhor.
* Roberto Capisano Filho é jornalista e foi um dos fundadores do Combate Rock em 2009, quando trabalhava no extinto Jornal da Tarde, em São Paulo
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