segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Música instrumental: a história transborda em 'Vertente', do projeto Braia

Quando  abanda mineira de folk celtic metal Tuatha de Danann resolveu dar voz de maneira direta aos que nunca foram ouvidos em seus dois mais recentes trabalhos, deum um banho de história e engajamento dentro de um segmento carente de exemplos desse tipo. "In Eireann Nomine" trazia versões para canções de protesto irlndesas e "The Nameless Cry" vai direto ao ponto ao homenagear e louvar o grito do esquecidos.

O cantor e multi-instumentista Bruno Maia, o mentos do Tuatha, transferiu essa sede de protesto para o seu projeto paralelo instrumental, Braia, que resgata de modo sutil e delicado parte importante da história do Brasil. 

"Vertente" é o terceiro trabalho do Braia, um EP que sintetiza, de certa forma, o que foi realizado nos dois primeiros álbuns: funde música brasileira regional, de raiz, com suas influências celtas e muito jazz e fol norte-americano e europeu.

"Vertente" é um aprofundamento na busca por sons que representem a trajetória acidentada e violenta do Brasil, ao mesmo tempo em que expõe o refinamento e a riqueza melódica da música instrumental nacional, valorizando a viola caipira, aquela das dez cordas, e as sonoridades celtas típicas de uma nação marada pela tragédia e a opressão, mas, principalmente, pela resistência - no caso, a Irlanda.

Esbanjando bom gosto e delicadeza, "Vertente" revisita as tradições do interior de Minas Gerais e de São Paulo com fraseados limpos e soluções melódicas surpreendentes, permeadas com arranjos de flauta extraordinários.

Na mesma linha segue "Ventura", só que acrescentando elementos da música latino-americana, com um suingue contagiante e um belo trabalho de violões. "Ponto do Morro" e "Pagode Maduro" são mais suaves, destacando regionalismo do Norte e do Nordeste, resgatando ritmos pouco conhecidos do grande público..  

A proposta era essa: explorar sonoridades que fogem do comum e do rock.  Maia explora seu talento em outras vertentes da música, através de diferentes instrumentos e com uma liberdade artística que mergulha nas suas influências da música celta e brasileira. 

"Venho experimentado muito com a viola caipira e sou um maravilhado pelo instrumento e sua riqueza. Mesmo não sendo um violeiro raiz, me inspira muito explorar as muitas possibilidades e horizontes que este instrumento me oferece", diz o artista.

Ouça o EP em https://open.spotify.com/intl-pt/album/3JEbV2hMQHtqYJDuBH0cQO?si=do8FwvMoTF2T1-GIjBXbYw 

Bruno Maia também comenta o desafio de gravar as quatro faixas presentes neste EP: “Se enganam aqueles que têm a viola como um instrumento que representa apenas a tradição, o antigo e algo cristalizado. Pelo contrário, por ser tão ligada ao popular e ao tradicional, este instrumento é um saber muito dinâmico e que com seu manuseio dia a dia por novos agentes e gerações sempre tem seus idiomas e linguagens reelaborados e remodelados dia sim, dia também. A viola de 10 cordas é um instrumento quase sempre associado à música caipira (Por isso mesmo é também conhecida como Viola Caipira) e é uma grata surpresa vê-la soar outras sonoridades”.

As quatro faixas presentes em “Vertente” farão parte do terceiro álbum completo de estúdio do Braia, a ser lançado em 2024. O EP tem composição e produção do próprio Bruno Maia, no Braia Studios, em Varginha-MG. 

O Braia nasceu no ano de 2006 quando o músico, produtor musical e multi instrumentista mineiro, Bruno Maia, resolveu tocar um projeto paralelo a sua banda principal, o Tuatha de Danann. Com o Tuatha, Bruno já havia explorado muitas possibilidades musicais dentro do rock e heavy metal,

Com o Braia, Bruno já lançou os álbuns “Braia …E o Mundo de lá” de 2007, e “Braia …E o Mundo de Cá”, de 2021. 

Leia abaixo como Bruno Maia avaliou esse seu novo trabalho:

Pagode Mouro

O elemento ibérico é fator constituinte da identidade brasileira, assim como a cultura e saberes dos povos originários e dos povos de África que, neste caldeirão formidável e porque não dramático da colonização, gerou nosso povo. 

A Península Ibérica foi conquistada e dominada durante séculos por muçulmanos, originários do noroeste da África, chamados mouros. 

O reinado mouro na península durou quase 700 anos e a incorporação dos elementos árabes na cultura, música e imaginário daquele povo europeu se fez muito forte, tornando a produção daquela região, inclusive sua música, algo muito peculiar desde a Idade Média.

 Um destes substratos assimilados e enraizados por aqui é o uso do modo mixolídio nas obras musicais, um modo que remete o ouvinte diretamente ao oriente, ao imaginário islâmico e afins, sendo este o elemento ‘mouro’ contido no título da música, já o pagode, esta vertente.

entre os ritmos sertanejos e caipiras, criado pelo mítico Tião Carreiro (natural do norte de Minas) é um dos mais emblemáticos e personalíssimos caracteres da viola caipira. Misturei estas duas instâncias e sapequei um ‘Pagode Mouro’.

Ponta do Morro

Este era o nome dado a uma das primeiras regiões povoadas de Minas Gerais, que ficava ao pé da Serra de São José( linda serra que hoje divide as cidades de Tiradentes e Prados). 

Há referência a esta localidade, Ponta do Morro, nos primeiros relatos sobre Minas Gerais, inclusive no clássico ‘Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas’, de Antonil, no ano de 1711. 

Com a abundância de ouro encontrado na região do Rio das Mortes, logo formou-se um arraial, o Arraial de Prados, de onde, num curto lapso temporal, saíram muitas figuras que participaram da Inconfidência Mineira, inclusive a única mulher que realmente participou da conjuração, Hipólita Jacinta Teixeira de Mello, de quem sou parente, pois minha família materna tem suas raízes em Prados, descendo dos Mello de Prados. Ponta do Morro também era o nome da fazenda de Dona Hipólita, onde se acredita terem acontecido alguns encontros dos inconfidentes.

Vertente

Esta obra é uma que se aproxima mais do que já faço há muito tempo que é o manuseio da matéria irlandesa, da música tradicional irlandesa colocando-a em dialogo com outras expressões e gêneros musicais: o rock, a mpb, o erudito etc. 

Aqui temos duas jigas guiadas pela viola( a jig é um dos ritmos tradicionais da música irlandesa), a primeira tocada na afinação cebolão em Ré e a segunda em Rio Abaixo. Este segundo movimento, a jiga em Rio Abaixo, é uma variação de um tema que compus pro Tuatha, chamado ‘Nick Gwerk’.

 Nicholas Georg Gwerk foi um irlandês que participou da Inconfidência Mineira. Este irlandês viveu em Minas Gerais em grandes vilas à época como Sabará e Diamantina, inclusive trabalhou na administração diamantífera. 

Estranho é que pela constituição vigente ele nem poderia entrar na Capitânia de Minas Gerais, pois a coroa portuguesa, no intuito de proteger as minas de ouro e diamantes da região, não permitia a entrada de estrangeiros em seu território, apenas cidadãos lusos tinham esse direito. Mas, fato é que ele aqui viveu por um tempo e acabou sendo preso na cadeia de Vila Rica( hoje Ouro Preto) como partícipe do crime de inconfidência contra o Rei/Rainha, ao lado de Tiradentes.

Vertente

Uma peça com influências eruditas, latinas, com cheiro portenho à lá Piazolla e também comandada pela viola caipira em Rio Abaixo. Ventura é o acaso, a sorte enquanto condição potencial, mas pode ser também, alguém poderá dizer, quem sabe, uma homenagem a Ventura Mina, um escravizado que liderou um levante dos seus em prol de sua liberdade no Termo de Carrancas há dois séculos, no que passou à História como ‘Revolta de Carrancas’.

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