quarta-feira, 18 de novembro de 2020

A morte sobre as duas rodas e a incapacidade de entender a mobilidade urbana

 Marcelo Moreira



Qual a diferença entre ser atropelado na periferia ou em lugar nobre como Perdizes, Sumaré ou Pinheiros? Se o atropelado for branco(a), um(a) profissional bem-sucedido(a) e ser uma autoridade em mobilidade urbana. a diferença é gigantesca e pode até render quase dez dias de reportagens na maior emissora de TV do país

Não se trata de quantificar ou de medir o tamanho de tragédias, mas apenas de constatar uma dolorosa realidade: a ciclista e ativista Marina Harkot, de 28 anos, morreu atropelada na madrugada de 7 para 8 de novembro enquanto pedalava na avenida Paulo VI, em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. 

Sua morte gerou comoção nacional, até porque era uma garota engajada e especialista com mestrado em mobilidade urbana e se tornou um símbolo da tragédia urbana que são as grandes metrópoles - e a a uma semana das eleições municipais.

Poucos dias antes da morte de Marina - cuja morte teve uma repercussão gigantesca, como deveria ter em face da guerra que existe no trânsito desde sempre - dois trabalhadores morreram na avenida Jacu-Pêssego, na zona leste, ou seja, periferia. Pedalavam indo para o trabalho antes das 5h da manhã. 

Uma das mortes mereceu uma reportagem de um minuto na mesma emissora; a oura, mero registro do acidente, sem imagens e nem a divulgação do nome da vítima. Mesmo com a repercussão doc aso de Marina, tornaram-se apenas estatística nos dias seguintes.

São Paulo registrou 25 mortes de ciclistas neste ano, mesmo com pandemia de covid-19 e várias campanhas educativas. E nada vai mudar com a comoção por Marina: ciclistas continuarão sendo vítimas e "culpados", sejam quais forem as circunstâncias.

O desrespeito geral às leis de trânsito ocorre dos dois lados, mas pedestres e ciclistas são mais vulneráveis. Têm poucas chances de se defender e menos possibilidades de se mover a não ser que desafie a falta de ciclovias, ciclofaixas e de calçadas.

 

Assunto incômodo em tempos de eleição. Assunto incômodo para uma população que despreza os direitos civis e os direitos humanos - se assim não fosse, o que explicaria a preferência por políticos avessos a políticas  como João Doria e Bruno Covas, ambos do PSDB e ávidos privatistas e com ojeriza a pobres, a drogados da Cracolândia e a trabalhadores ciclistas.

É uma população que criticou as manifestações pela morte de Marina Harkot - "baderneiros que atrapalham o trânsito". 

A mesma população que rechaçou Fernando Haddad (PT) como prefeito porque este, meio que atabalhoadamente, impôs meio que à força uma série de ciclovias na cidade, o começo de uma era de civilização, com medidas civilizatórias, como ele mesmo, de forma arrogante, justificou.

Os baderneiros cicloativistas tentaram emplacar uma sumidade no assunto, a jornalista e radialista Renata Falzoni (PV), como vereadora, mas a população prefere manter os mesmos seres execráveis de sempre na Câmara Municipal - gente que domina o transporte legal e ilegal de passageiros na zona sul, gente que que garante facilidade para comerciantes ilegais do centro de São Paulo, gente que desmata a Mata Atlântica no extremo sul da capital, gente que engana gente de todo o tipo em templos imundos e seitas imundas de todos os tipos...

Além de Falzoni, a população que odeia bicicleta e pobre e a periferia e tudo o que lembre auxílio de cunho social ignorou a campanha de Nabil Bonduki (PT), ex-vereador e um dos arquitetos/urbanistas mais importantes do Brasil, alguém muito sério e que luta bravamente para tornar megalópoles mais humanas e menos mortíferas.

Cicloativismo não rende votos e incomoda a população como um todo. O paulistano conservador, de todas as origens geográficas e sociais, detesta medidas civilizatórias. 

Reclama e xinga a vítima, dentro de um ônibus lotado, quando há acidente e um ciclista morre debaixo de um ônibus ou de um carro importado pilotado por um playboy bêbado ou drogado.

Esse mesmo imbecil silencia quando alguém de bicicleta quase o joga na parede quando pedala na calçada, em sentido contrário. Mas profere todos os palavrões do mundo quando esse mesmo ciclista aleatório morre debaixo do "busão" na hora do pico do trânsito...

As ciclovias de Haddad foram um problema, no começo, quando não foram discutidas e debatidas e reduziu o espaço para os carros e para os coletivos. Vagas de estacionamento sumiram e frentes de casas e sobrados de bairro foram "interditadas" para as "visitas". 

No afã de deixar uma marca, a implantação da medida cometeu alguns equívocos e irritou muita gente. Entretanto, tente hoje imaginar São Paulo sem os 400 insuficientes quilômetros para a circulação de bikes para que muita gente possa se locomover para o trabalho. 

Só que tente também imaginar a periferia das zonas leste e sul sem as inexistentes ciclovias e seus constantes atropelamentos nas principais vias.

Mais do que educação, o eleitor/morador precisa de um banho de cidadania e de bom senso, além de punições mais duras para os frequentes e diários desvios de conduta e descumprimento das leis.

Enquanto o "homicídio culposo" predominar nos casos de atropelamento - a imprudência dos motoristas é a imensa maioria das causas -, a bicicleta continuará sendo vista como um tormento, como "um atrapalho no trabalho", como costumava dizer John Lennon.

Marina Harkot, depois de morta, se transformou em um imenso incômodo, a ponto de entrar na pauta das campanhas eleitorais pelo Brasil, principalmente na maior cidade do país, que é São Paulo. 

Foi preciso que sua morte ocorresse para que, finalmente, um debate minimamente sério ocorresse entre especialistas e usuários dos sistemas de transporte e mobilidade se dignassem a ouvir uns aos outros. Pena que isso não seja suficiente para diminuir as mortes de ciclistas pela cidade.

A população precisa querer participar desse debate. Precisa aceitar a bicicleta como meio de transporte, e não apenas como forma de lazer.

 

Ciclovias apenas não bastam. é preciso mais, bem mais, e vai além da educação e das noções mínimas de civilidade no trânsito. Passa por leis mais duras, punições aplicadas e exemplares e impostos maiores para automóveis, especialmente para veículos que conduzem apenas um pessoa, o seu motorista, no caso.

A situação é mais complexa, já que passa também por um reordenamento econômico da cidade, com a criação de polos industriais e comerciais mais fortes em outras regiões da cidade, principalmente nas mais carentes.

Ou seja, implica a criação de empregos na periferia, longe do centro expandido, para que a maioria da população possa trabalhar mais perto de casa, a ponto de andar menos de ônibus, menos de carro, que possa ir a pé ou de bicicleta.

E isso vale também para as cidades das Grande São Paulo, que precisam participar desse reordenamento econômico para que possam permitir que seus habitantes tenham menos necessidades de descolamentos mais longos para trabalhar. E a bicicleta é fundamental para que esse reordenamento seja bem sucedido.

"My White Bycicle", clássico da banda escocesa Nazareth, é uma canção que faz uma metáfora sobre o mundo idílico da infância, simbolizada pela bicicleta branca, com a dura realidade da vida adulta e suas dificuldades. Que também sirva de metáfora para a questão da mobilidade urbana no Brasil e de homenagem a Marina Harkot e aos trabalhadores mortos em suas bicicletas na zona leste de São Paulo.

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