terça-feira, 13 de junho de 2023

O tempo movido a guitarras e inteligência no blues de Filippe Dias

Valorizar a existência, o tempo e a realidade, com o poder de desfrutar a vida em "tempos" tão complicados. Nunca arte discutiu tanto o tempo em que vivemos e o tempo que aproveitamos, principalmente depois da pandemia de covid-19. E blues saiu na frente ao refletir como estamos encarando a passagem - e o aproveitamento - do tempo.

O paulistano Filippe Dias é um daqueles artistas ousados que enxergou a oportunidade que precisava para criar seu segundo álbum. Foi na pandemia que ele encontrou o tempo para questionar e pensar sobre... o tempo - quase ao mesmo tempo em que o guitarrista norte-americano Joe Bonamassa em seu último álbum, "Time Clocks".

O tempo mostrou que a decisão de abordar o tema deu ótimos resultados. "DIAS", o segundo trabalho de Filippe, rendeu o segundo prêmio nacional, na área de blues, do prêmio Profissionais da Música em 2023. Não é um trabalho conceitual no sentido estrito do termo, mas tem um conceito que permeia as canções.

"Esse álbum começou a ser criado, pensado e composto em 2019 e tomo forma ao longo do tempo, com uma pandemia no meio. Dadas as circunstâncias a que todos fomos submetidos, os trabalhos tomaram um rumo que me proporcionaram a chance de pesquisar, refletir e, e me permite um autoelogio, ousar na busca de coisas novas", disse Dias em conversa exclusiva com o Combate Rock.

"DIAS", mesmo abordando o tempo em algumas de suas canções, evidencia uma outra característica do guitarrista paulistano: o incansável trabalho de ourivesaria e de aproveitamento de todas as possiblidades.

Filippe Dias é um daqueles músicos batalhadores que topam tocar o tempo todo. Apaixonado por blues, soul e rhythm and blues leva seu som refinado e seus fraseados limpos e elegantes para a rua, por exemplo, e adora. Tinha espaço cativo na avenida Paulista, em São Paulo, aos domingos, perto de uma das saídas da estação Trianon-Masp do metrô, quando a via é interditada para lazer.

Sem rodeios, permanecia com seu trio o dia inteiro, alternando versões eletrizantes de clássicos do blues e do rock e suas composições do até então único trabalho autoral, o EP "Borderline". Com sets de 35 a 40 minutos, juntava uma aglomeração de respeito em todas as entradas.

E então veio a pandemia de covid-19 trancando todos em casa. A solução foi investir nas lives, nos shows intimistas gravados e nas composições do que viria a ser "Dias", seu primeiro álbum.

O investimento de tempo e recursos, com tempo de sobra para refletir e burilar, resultou em um trabalho estupendo. Detalhista e instrumentista de bom gosto, não economizou na hora de despejar todas as suas influências.ahou sois

A parceria com Amleto Barboni, veterano guitarrista da cena paulistana apaixonado por blues, transformou o trabalho de Dias. O que já era bom, mas com a urgência e crueza como características, ganhou sofisticação e elegância, principalmente na elaboração de arranjos e condução de orquestra de 32 integrantes.

"Não tenho dúvidas em afirmar que a parceria com Barboni foi fundamental para o ótimo resultado que o novo disco teve, com excelente receptividade e, como consequência, a conquista de mais um prêmio", comemora Dias.

E isso fica evidente ja na abertura. O blues rock que tanto chamou a atenção dos aficionados na avenida Paulista e nos vídeos da internet explode já primeira música, "Don't Bother Calling", encharcada de feeling e com uma guitarra chorosa e bem timbrada. Difícil não lembrar do norte-americano Joe Bonamassa e do inglês Danny Bryant.

"Don't You Hear (Your Poor Lover Calling)?" segue a mesma toada, mas desta vez o blues remete ao groove negro dos norte-americanos Eric gales e Gary Clark Jr. A guitarra deliciosa e manhosa se esparrama por riffs tortuosos, com um solo portentoso que traz mais referências - Warren Haynes, do Gov't Mule.

Na sequência a coisa desacelera, mas fica ainda melhor no longo e dramático blues "Brother, Brother", com uma pegada de Neil Young no começo e depois descambando para uma sequência de riffs dramáticos e climáticos em quase dez minutos de extremo bom gosto.

O tom muda em "You Don’t Know How it Feels", que tem arranjos que deixariam Marvin Gaye orgulhoso. É uma canção simples, uma balada soul precisa e que traz elementos de "Fool", outra balada, que está no EP de estreia de Dias. 

O bom gosto permanece em "Turn the Lights On", agora um rhythm and blues "maneiro" e moderno, com arranjos sutis e bem encaixado. A guitarra ao estilo soft jazz é o ponto alto. E o jazz predomina nos arranjos de "Give It Time", bem anos 70, com um órgão Hammond que faz toda a diferença.

"Stitching Out Love" retoma o rhythm and blues setentista esbanjando talento e sofisticação em mais uma balada, enquanto que "We Went to the Moon" investe em um clima sessentista à la Beatles. É a menos blues e menos impactante - tinha de haver uma assim entre tanta coisa legal. O efeito de banjo em uma das sequências de cordas é uma boa sacada.

A grande surpresa do álbum "Dias" foi reservada para a trilogia de encerramento, com canções mais acústicas e diferentes, cantadas em português e passeando pela folk music e MPB. É o ápice do bom gosto, como na sequência de abertura da instrumental "Decolagem", com um piano suave e delicado que lembra bastante as suíte de cunho erudito de Emerson, Lake & Palmer.

"Consegui resgatar uma série de influências que tive ao longo de muito tempo tocando guitarra e creio que atingi o objetivo de diversificar o trabalho e mergulhar em outros mundos, tanto como compositor como intérprete. A trilogia final repercutiu muito bem e se tornou uma marca deste trabalho, e a língua portuguesa valorizou bastante as composições", explica o guitarrista.

O piano faz a emenda perfeita para "Singularidade", que esbanja delicadeza em uma letra romântica, que ganha uma interpretação comovente embalada por arranjos de cordas expressivos - é quase o encontro da bossa nova com o compositor norte-americano George Gershwin. Os temas orquestrais do final são igualmente belos.

Falta a guitarra, já que se trata de um disco de guitarrista e vocalista? Falta, mas quem se importa com isso diante da beleza da canção e dos arranjos? Por acaso alguém sentiu falta de guitarra e bateria em "Eleanor Rigby" ou "She's Leaving Home", dos Beatles? Longe de fazer qualquer comparação indevida, o princípio é o mesmo.

O violão entra imediatamente ao final, na emenda com a canção seguinte, "Barquinho", que envereda mais ainda por um clima de bossa nova, mas de inspiração new bossa, digamos assim - aquela que recauchutada com competência por bandas inglesas dos anos 80. 

É um desfecho inusitado para um disco de blues, mas que exalta a versatilidade e o ecletismo de um instrumentista e compositor de altíssimo calibre. "Dias" é um disco imenso, daqueles que redimem e elevam o espírito. Uma curiosidade: o single lançado no começo do ano, "Till I Get Her Back Again", ficou de forma, de forma inexplicável...

A conclusão é simples: álbum de rara beleza e densidade, teve reconhecidas essas características or críticos de arte antenados com o que de melhor se faz na música brasileira atualmente.

Dessa forma, Filippe Dias se conectou a um período de mudanças. "Estava rolando um link das coisas que escrevia com as mudanças que estavam acontecendo. A partir disso, tive a ideia de que esse disco poderia falar do tempo, da impermanência das coisas, e de como elas se transformam e a gente se transforma junto."

Produzido, gravado e mixado por Amleto Barboni, "Dias" foi masterizado por Brian Lucey (Doyle Bramhall II, The Black Keys, e Arctic Monkeys), em Los Angeles.

 https://www.youtube.com/watch?v=r9DsdBwTmjc


https://www.youtube.com/watch?v=gbdL6Hzfjcw

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