Marcelo Moreira
A terceira está se reinventando mais uma vez, recusando-se a morrer, por mais que as tragédias se sucedam e seus integrantes estejam à beira dos 70 anos de idade.
O AC/DC subverteu a lógica, mais uma vez. Definhando e destroçado, ainda sob o impacto da morte de Malcolm Young, o chefão e guitarrista base, o quinteto ressurge revigorado, de certa forma, e apresentando um material novo digno, embora longe de ser brilhante. Independentemente da qualidade, é maravilhoso ver a banda de volta.
"Pwer Up", po "Power Up", como muitos veículos de imprensa preferiram, é suntuoso, reverberante e cativante, embora abuse demais das fórmulas prontas de sempre. Mas quem se importa? É AC/DC puro, timbre por timbre.
Falta aquele hit estrondoso, como "Rock'n' R'oll Train", de "Black Ice", de 2008, ou "Play Ball", de "Rock or Bust", de 2015? E quem se importa?
Em um ano terrível, com muitas mortes de músicos importantes e uma pandemia de covid-19 que teima em ão ceder, bandas como AC/DC e Deep Purple, ainda na ativa e lançando bons álbuns, são mais necessárias do que nunca.
"PWR Up" é daqueles CDs improváveis diante dos antecedentes recentes que praticamente dizimaram a banda. Sem a condução segura de Malcolm Young, tudo balançou em direção ao naufrágio na produção de "Rock or Bust", e o mundo da música temeu pelo fim do quinteto de origem australiana.
Os problemas de saúde impossibilitaram Malcolm de continuar na música a partir de 2012. Parte do álbum estava encaminhada, assim como as composições, mas o guitarrista teve se afastar definitivamente, sendo substituído novamente pelo sobrinho Steve.
Apesar de sobrinho, Steve Young tem praticamente a mesma idade de Malcolm e Angus, sendo filho de Steve, o terceiro dos oitos filhos da prole dos pais dos músicos. Portanto, era bem mais velho que os irmãos guitarristas.
O sobrinho é bom guitarrista, mas teve carreira mediana na Austrália. Substituiu Malcolm entre 1989 e 1990, quando este teve de encarar a reabilitação por conta do alcoolismo.
Já seria um baque gigante, mas os acidentes continuaram e o cantor Brian Johnson foi diagnosticado com um grave problema auditivo durantes as gravações. Teve de se afastar e acabou demitido, ficando de fora da turnê. Axl Rose, do Guns N'Roses, foi chamado às pressas.
Aí o baterista Phil Rudd, acusado de assassinato na Nova Zelândia, chegou a ser detido por horas e foi impedido de sair do país. Outra emergência e o ex-baterista do grupo, o galês Chris Slade, atritado com todos desde que foi demitido, em 1994, foi chamado.
A turnê de "Rock or Bust" teve altos e baixos, mas chegou ao fim com uma notícia ruim: Cliff Williams, o baixista, estava se aposentando.
O AC/DC beirou o abismo com apenas Steve e Angus no comando. O que fazer?
Dois anos de férias e um mergulho no passado revigoraram tio e sobrinho. Malcolm morreu em 2017, mas tinha deixado vasto arquivo coim riffs e ideias que serviram para o disco anterior e inspirariam a dupla para um eventual novo álbum.
"Perdoado" por ter ficado doente antes da turnê de "Rock or Bust", Brian Johnson estava de volta, assim como Phil Rudd, que prometeu por tudo o que era mais sagrado estar livre da Justiça neozelandesa. Williams teve de ser convencido, a muito custo, a sair da aposentadoria, e a velha química estava quase de volta.
Tentaram manter segredo, mas foram fotografados em estúdio no Canadá entre 2017 e 2018, e então se trancaram e trabalharam duro, segundo Johnson disse, para retomar o caminho que parecia perdido.
"PWR Up" é igualzinho a tudo o que foi feito pela banda neste século - e são apenas quatro álbuns em 20 anos. Steve Young recria nota por nota, timbre por timbre, cacoete por cacoete, o tio morto. É uma cópia perfeita de Malcolm nos mínimos detalhes, garantindo a continuidade de um estilo inconfundível. A questão é complicada: será que era isso de que o AC/DC precisava?
A trinca de abertura, "Realize, "Rejection" e "Shot in the Dark", parece ter a mesma base melódica e os mesmos riffs, com algumas variações. Mas quem se importa?
A base de guitarra está em perfeita consonância com o baixo quase marcial e inconfundível de Williams e Angus toma conta de tudo, o tempo todo. Há mais solos e o mestre também dobra muitas das bases, o que dá aquela potência sonora que nos acostumamos desde que "Stiff Upper Lip" foi lançado, em 2000.
Fãs mais antigos, especialmente aqueles que não abrem mão das canções com Bon Scott, o cantor morto em 1980, não se conformam, com razão, com a pobreza das letras e das rimas.
Scott levou consigo toda a graça, o sarcasmo e a inteligência disfarçada, mas o AC/DC seguiu em frente e emplacou uma série de álbuns que se tornaram os mais vendidos da história.
Em um momento de reconstrução, era quase inevitável que tivéssemos alguns senões. E, diante do momento, as letras são o de menos. AZ banda conseguiu soar revigorada e com energia, mesmo longe de seus melhores momentos.
E estes jamais voltarão. Caminhando para o fina da carreira, é pouco provável que o AC/DC consiga fazer algo tão bom e forte como "Black Ice", para ficar apenas em um disco recente bom. O quinteto precisava renascer e se reerguer, e fez isso com dignidade.
Mas por que o Deep Purple conseguiu fazer em "Whoosh!" um trabalho em alta qualidade? Talvez porque esteja estabilizado por anos, sem tragédias e problemas, e venha de uma sequência de CDs muito bons, culminando no lançado este ano. Mas é uma exceção entre os gigantes do classic rock, e não a regra. O mesmo pode ser aplicado ao trabalho final do Black Sabbath, "13".
"PWR Up", omo típico álbum do AC/DC deste século, não surpreende, mas agrada. O grande hit era para ser "Shot in the Dark", que teve um impacto mediano, mas outras boas ideias aparecem, como "Witch's Spell", que resgata o riff e a melodia de "Safe in New York City", canção de 20 amos atrás.
"Kick You When You're Down" e basicona, aquela canção para deixar todo mundo para cima em churrasco, e que poderia muito bem estrar em "Ballbreaker", de 1995.
"Demon Fire" (com mais uma levada "chupada" de "Safe in the New York City") e "Wild Reputation" abusam de novo das fórmulas prontas e de riffs e passagens mito semelhantes a músicas antigas - certamente já ouvimos aquilo antes com a banda.
A coisa melhora com a bacana "No Man's Land", que destoa um pouco e soa mais pesada e um pouco soturna, com Angus e Steve ousando um pouco mais para fazer algo diferente. Os melhores solos provavelmente estão aqui.
"Code Red" segue pelo mesmo caminho, com seu riff de guitarra viciante e pesado e solos de guitarra mergulhados em um boogie bem característico do AC/DC. É uma música que nos lembra que o AC/DC está bem vivo e nos coloca um sorriso no rosto.
O grupo ressurge depois das tempestades e isso era o mais importante. O álbum é melhor do que se poderia esperar e valeu pela espera.
É bem possível que tenhamos ao menos mais um disco de inéditas no futuro, mesmo com Angus entrando nos 70 anos - tem hoje 65. Aí sim, talvez, possamos ver o que realmente sobrou do AC/DC sem as muletas dos riffs de Malcolm guardados. E será muito legítimo esperarmos que Angus e os companheiros, apaziguados e mais tranquilos, ofereçam algo melhor (ou bem melhor) do que "PWR Up".
P.S.: Apareceram muitos vídeos no YouTube nos últimos dois dias questionando a existência do AC/DC. A pergunta básica - e tosca - era se o mundo precisava de mais um disco da banda. Quem pergunta isso entende quase nada de música e a resposta é sim precisa, e muito, de discos de bandas como AC/DC. Um disco ruim do AC/DC é milhões de vezes melhor do que o melhor disco que qualquer bandinha alternativa ou pretensamente hard'n'heavy. É muito mais necessário do que um CD do Greta Van Fleet.
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