Marcelo Moreira
Um centro de cultura e irradiação de conhecimento são termos normalmente atribuídos a livrarias, bibliotecas, sebos e até mesmo a bancas de jornais. O Combate Rock até mesmo prestou tributo recentemente às bancas, que foram a iniciação intelectual e musical de muita gente.
Mas será que as lojas de discos se enquadram nas definições que estabelecemos no início do texto? Mas é óbvio que sim, e isso fica muito mais claro quando se assiste à série documental "Minha Loja de Discos", produzida pelos brasileiros Rodrigo Pinto e Elisa Kriezis entre 2013 e 2016, quando moravam em Londres.
O casal percorreu várias lojas importantes dos Estados Unidos e Inglaterra e comprovaram a importância institucional e cultural das lojas em cidades de todos os tamanhos.
Na época da produção, a venda de CDs, LPs e DVDs ainda era importante em muitos lugares e recebia um apoio importante de bandas e cantores de sucesso que reconheciam a relevância das iniciativas para suas carreiras e para as comunidades locais.
De lá para cá, como negócio, muitas das lojas abordadas ou ao menos citadas sumiram por conta do inexorável avanço da tecnologia e dos negócios - e, no nosso caso, pra o mal, já que o fim das lojas físicas e nas ruas é um gigantesco rombo cultural, em todos os sentidos.
A revista Poeira Zine, em sua edição número 57, de novembro e dezembro de 2014, fez uma boa entrevista com Rodrigo Pinto a respeito do programa e do conceito que o norteou.
Galeria Nova Barão, em cima, e o boulevard, embaixo (FOTO: ASILO DE ROCKEIROS/FACEBOOK) |
Para os brasileiros, que viram as lojas de discos de rua desaparecerem de forma inapelável e sem o menor resquício de tristeza, comprar música física - CDs, DVDs e LPs - virou uma mera formalidade virtual. É a internet que nos salva, ainda que os paulistanos ainda possam desfrutar de dois centros comerciais que resistem à modernidade.
São duas galerias,a Galeria do Rock e a Galeria Nova Barão, sendo esta última mais dedicada aos vinis e os sebos. As duas ficam no centro de São Paulo e são reconhecidas mundialmente por sua excelência e pelo atendimento.
A Galeria do Rock é um importante local turístico e já virou personagem de novela da TV Globo anos atrás e por pouco não virou centro cultural, um antigo sonho do síndico, mas que ainda não saiu do papel.
A nota triste é que a galeria, tal como a conhecemos e que está prestes a atingir os 45 anos de existência como centro importante de comércio de música, está se desfigurando por conta da mudança de perfil comercial do prédio.
Com a decadência do comércio de música e o avanço do mundo digital/virtual, o número de lojas que vendem música física diminui a cada ano. No auge, já foram quase 150 lojas, nos anos 90. Hoje, não chegam a 30, que hoje têm de conviver com lojas de roupas, calçados, bugigangas e estúdios de tatuagem, a maioria sem relação com a cultura rock que fez a fama do local.
A Galeria Nova Barão, a poucos metros da Galeria do Rock, despontou como a alternativa óbvia para quem aprecia música e vender música.
Por volta de 2010, quando as mudanças na outra galeria já provocavam calafrios amantes da cultura paulistana, a Nova Barão chegou a abrigar 25 lojas que atraíam consumidores do mundo todo.
O número caiu, mas ainda assim representa um importante foco de resistência da cultura rock/musical do Brasil à medida que as lojas de rua desaparecem sem deixar vestígios.
As que ainda nadam contra a maré tiveram de se reinventar nos últimos dez anos, e ainda mais durante a pandemia de covid-19, a partir de março de 2020, com as persistentes restrições de horário de funcionamento.
Tiveram de partir para a venda também de roupas e instrumentos musicais, quando não também de venda de ingressos ou promoção de excursões para shows de rock importantes, no caso dos estabelecimentos de fora de São Paulo.
Galeria do Rock (FOTO: DIVULGAÇÃO/WIKIPEDIA) |
Se até os mesmos os shoppings descartaram as lojas de discos e as livrarias grandes, como tem acontecido recentemente, qual o sentido de existirem ainda no comércio de rua? Nem mesmo aquelas lojinhas que vendiam CDs de artistas superpopulares, a preços muito baixos, resistiram.
Em São Paulo, os desavisados só conseguem achar CDs e LPs em locais como sebos dedicados aos livros. A música geralmente está amontoada em algum lugar, com produtos em mau estado e longe da qualidade ou raridade necessárias. Sobram mesmo as galerias já citadas.
Mas existem os locais ultraespecializados, como a Eric Discos (R. Artur de Azevedo, 1874 - Pinheiros), uma das inspirações para o filme "Durval Discos", longa-metragem cult brasileira que tinha como pano de fundo o comércio de música.
Eric Crauford, o inglês dono da loja resistente, tem 70 anos e mudou-se para São paulo em 1972. Sete anos depois deixou o emprego em um banco para montar a sua loja de discos, com sua cara e seu conceito.
Eric Crauford em sua loja (FOTO: DIVULGAÇÃO) |
O local atual, no bairro de Pinheiros, na zona oeste, reúne mais de 80 mil itens em seis salas, a imensa maioria de vinis. É um verdadeiro paraíso musical em uma cidade que abandonou definitivamente a música física.
Quem resiste também é a feira de música da praça Benedito Calixto, também em Pinheiros. Todos os sábados, das 8h às 18h, a parte central da praça e do evento cultural é tomada por comerciantes de músicas, que vendem CDs, DVDs, LPs, fitas cassete, fitas de rolo e outras relíquias sonoras.
Torna-se uma alternativa um pouco mais em conta para quem busca raridades, mas o mais legal é conversar com as figuras maravilhosas que habitam aquele espaço, como João Pacheco e Diaz (também conhecido como Sheik Yerbouti, por ser muito parecido com o Frank Zappa caracterizado na capa do LP de mesmo nome). São pessoas muito cultas e desprendidas, fazendo valer cada segundo o programa cultural.
Além desses dois grandes locais de venda de música, sobraram outros por aí, nas ruas, na metrópole? Eu desconheço. Na Grande São Paulo e interior, no entanto, ainda sobrevivem estabelecimentos que se recusam a morrer.
É o caso da Merci Discos, no bairro de Rudge Ramos, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. A portentosa loja já ostentou uma esquina gigante em sua matriz e teve filiais em shoppings do ABC, mas hoje está restrita a um local modesto, uma fração do que foi a sede.
A parte de rock internacional perdeu o brilho, e é raro que faça alguma encomenda específica, ainda mais do exterior. Há algumas peças importadas, mas os preços, em alguns itens, assustam. No entanto, talvez seja o maior centro de resistência do comércio tradicional de música na Grande São Paulo, vendendo bastante itens de música brasileira e ritmos do momento.
Na vizinha Santo André, são dois os locais que nos orgulham por manter a venda de música em alta, mesmo com dificuldades: Metal Discos e A Gruta.
A Metal existe há pelo menos 25 anos e é fruto do sonho de Jean Gantinis, guitarrista da banda Montanha e conhecida figura roqueira do ABC. Ao lado dos filhos, vai tocando a vida s, livros, camisetas, calças e instrumentos musicais. ]
Por questões de espaço, trocou a esquina das ruas Álvares de Azevedo e Elisa Fláquer, no centro da cidade, perto do calçadão da rua Coronel Oliveira Lima, por um espaço mais prático na própria Álvares de Azevedo, do outro lado da rua, no número 159.
Jean Gantinis (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE) |
Característica dos comerciantes de música, Gantinis adora falar e seu papo é sempre afiado e recheado de conhecimentos, especialmente sobre rock setentista e metal dos anos 80. Até hoje a loja é ponto central dos roqueiros do ABC, seja para conversar, seja para partir pra as baladas e shows.
A Gruta existe desde 2006 na rua coronel Abílio Soares, 426, no centro, quase Vila Assunção. É provavelmente o melhor bar de rock do ABC, sendo muito frequentada por artistas nacionais e internacionais de passagem pelo Brasil.
Foi ali que Warrel Dane, ex-vocalista do Nevermore e Sanctuary, se divertiu bastante e recebeu fãs inúmeras vezes, e foi ali que ele recrutou músicos para sua carreira solo no Brasil, que acabou rendendo o seu último CD. Dane morreu em São Paulo, em 2017, vitima de ataque cardíaco.
O último que passou por lá foi Roland Grapow, guitarrista alemão que tocou no Helloween e no Masterplan e que estava em São Paulo fazendo shows. Isso foi em 2019.
A grande sacada do proprietário, conhecido como Sergio Gruta, foi ter alugado o imóvel vizinho e ter criado uma rock shop associada ao bar.
Os produtos principais são CDs e DVDs, mas também tem isqueiros, copos, camisetas, roupas e outros acessórios. E o legal é que a loja está sempre antenada com os principais lançamentos nacionais e importados vindos diretamente da Galeria do Rock e dos selos mais importantes do Brasil.
Durante a pandemia, o imóvel vizinho foi cedido a um empreendimento roqueiro que trabalha com diversos produtos, principalmente roupas, mas isso não foi problema, já que os artigos da loja agora estão espalhados pelo bar.
Em Santos, no litoral paulista, sobrevive a Iron Fist (R. Fernão Dias, 4 - Loja 11 - Gonzaga, Santos) em uma galeria situada em uma das principais áreas comerciais da cidade.
Embora tenha o "rock wear" como nome do estabelecimento, é uma casa de música, vendendo CDs e DVDs e sendo um dos principais pontos roqueiros de encontro da Baixada Santista.
Como não poderia deixar e ser, o proprietário é uma figura que adora conversar e conhece muito de rock. Pepinho Macia é filho de José "Pepe" Macia, ex-ponta-esquerda do Santos e que jogou mais de dez anos ao lado de Pelé no clube e na seleção brasileira. Embora na reserva, foi bicampeão do mundo em 1958 e 1962.
Pepinho Macia (FOTO:ARQUIVO PESSOAL) |
Além de comerciante, Pepinho seguiu os passos do pai no futebol em paralelo. Pepe também foi treinador e campeão paulista de 1986 pela Internacional, de Limeira.
Pepinho foi treinador das categorias de base do Santos e campeão da Copa São Paulo de Juniores com o Santos em 2015, além de ter trabalhado no Corinthians. Tentou se eleger vereador em Santos pelo MDB em 2020, mas não conseguiu.
Ao menos duas vezes por semana, Pepinho publica em vídeo nas redes sociais as novidades que chegam à loja. Por muito tempo, também foi um ativo organizador de excursões para shows de rock internacionais em São Paulo. A Iron Fist respira rock o tempo todo.
Com a mesma importância de disseminadora de cultura sobrevive, e bem, a Heavy Metal Rock (R. Trinta de Julho, 244 - Centro, Americana - SP, 13465-500), em Americana, cidade que fica entre Campinas e Piracicaba.
Heavy Metal Rock, em Americana (FOTO: DIVULGAÇÃO/FACEBOOK) |
A loja caminha para ps 40 anos de existência e já faz um tempo que está se aventurando na área de selo musical, apoiando e lançando trabalhos de bandas de rock importantes do interior de São Paulo.
Assim como a maioria das que resistem, teve de entrar para o ramo das roupas de rock para diversificar os produtos e sobreviver. Acabou virando referência no interior no ramo de comércio virtual.
Wilton Christiano, o fundador e proprietário, assim como os outros do ramo citados neste texto, é bom de papo e profundo conhecedor de música e rock. Não há como, tem de ser para sobreviver tanto tempo neste mercado depredado e desvalorizado.
O que move esses idealistas a continuarem em um negócio onde as pessoas se acostumaram a conseguir música de graça e, muitas vezes, a descartá-la em seguida? Em um negócio onde as pessoas se contentam em ver um show ou clipe no YouTube, com qualidade baixa?
Ao longo das próximas semanas, conversaremos com a maioria desses empreendedores para entender seus negócios e suas paixões pelo rock.
Marcelo Moreira belíssimo texto. Quando vier para Santo Andre, gostaria de sua visita em minha loja, Sebo Letra & Música. Estamos completando um ano, e trabalhamos com cultura, livros, discos de vinil, cds e dvds, principalmente de rock. Abraços
ResponderExcluirhttps://www.facebook.com/seboletraemusica/
Bela recuperação da memória fotográfica paulista, Marcelo! Parabéns!
ResponderExcluirExcelente artigo! Ansioso pelos novos relatos.
ResponderExcluirMelhor Leitura sobre o mundo da musica... Principalmente no Brasil
ResponderExcluirMuito bom o texto. Parabéns!
ResponderExcluirDá aquela vontade de sair de Curitiba e bater perna em São Paulo atrás dessas maravilhas sonoras.
Belo e ultra informativo texto! Falou a pura verdade sobre a galeria do rock e a saga alucinada do sindico querer fazer dela um instituto cultural em nome da galeria do rock . O tal instituto alem do dinheiro nada tem de cultural e muito menos a ver com rock. E muito menos alguma contra partida em favor de melhorias pára o edificio; Hoje o nome galeria do rock ė apenas uma marca que ele registrou em nome dele, ((na minha opiniāo um crime)) eu da Baratos Afins (apesar de fazer parte do conselho inoperante que só ė chamado e ouvido na hora de redolver encrencas )e praticamente todos os proprietarios das lojas de discos do local nao compactuamos, não decidimos; nao apoiamos. Nao damos nenhum palpite e nem sequer somos convidados a participar de qualquer parolagem ou basofia que aquela administraçao pratica por la a mais de 25 anos ; mas o cara nao larga o osso;e o pior esta preparando o proprio filho a se perpetuar no poder.estou no local a 43 anos e minha pretençao é apenas a minha Baratos Afins , independente da galeria ser do Rock , do Samba, ou do pagode. Fora síndico!!
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