terça-feira, 21 de março de 2023

Black metal chafurdou na delinquência - e o radicalismo perdeu todo o sentido

 O radicalismo nas artes costuma produzir obras-primas e impulsionar a civilização, além de consagrar gênios. Quase sempre, quando isso acontece, esta associado á inteligência. 

O rock é um produto essencialmente radical, que surgiu para chocar e mudar a cultura ocidental - e originado de outro radicalismo em todos os sentidos, o blues, que colocou a música negra na prateleira de cima, ao lado do jazz.

Dentro do rock o radicalismo deu o tom em sua história, desde os experimentos e avanços sonoros dos Beatles, o comportamento selvagem de Rolling Stones e The Who, o som pesado e "incômodo" de Led Zeppelin e Black Sabbath, a erudição progressiva de King Crimson, Emerson lake and Palmer e Yes, o primarismo agressivo dos punks...

O black metal, surgido com o Venom entre 1980 e 1981, faz parte dessa evolução do radicalismo nas artes e na música. Não bastava ser mais pesado, mais veloz, mais violento e mais agressivo, como o heavy dos anos 80 e o thrash metal. Era preciso ser mais blasfemo, mais ofensivo, mais desafiador e mais podre. 

E então as variantes splatter, gore, grind, brutal, blackened e outras surgiram para tornar a coisa ainda mais radical e virulenta, sempre com altas doses de violência - e, sobretudo, com inteligência.

Já ensinavam os teóricos marxistas franceses dos anos 1960 que radicalismo sem inteligência deixa de ser radicalismo e torna-se apenas delinquência.

De certa forma, é o que aconteceu com alguns segmentos mais extremos do rock. O black metal e algumas variantes do punk, na ânsia de se tornarem intragáveis, intoleráveis, desagradáveis e insolentes, derivaram para a ignorância e a delinquência, deixando de ser perigosos de fato. Tornaram-se caricaturas do que pretendiam ser. 

As ofensas deixaram de surgir efeito e tornaram-se repetitivas até escorregarem para o puro vandalismo e o crime cujos fundamentos eram noções infantis de revolução e rebeldia. E Rebeldia se inteligência, fundamento e foco torna-se apenas birra.

Satanismo surge para reforçar o radicalismo

O suposto radicalismo de satanistas escandinavos travestidos de músicos de metal na virada dos anos 1980 e 1990 tinha características de seita, e não de movimento artístico. Incorporou elementos alheios à música na tentativa de impor e disseminar uma ideologia com bases autoritárias e totalitárias, bem de acordo com os processos políticos europeus os anos 1930. Não era difícil imaginar que a violência seria o passo seguinte, deixando a música de lado.

O chamado Inner Circle, na Noruega, surgido a partir do crescimento da cena black metal escandinava, ultrapassou os limites da arte e do discurso ideológico anticristão e antirreligião para migrar para uma tentativa de construção de uma nova ordem social baseada no mais puro terrorismo - por mais que tudo isso soasse infantil e inverossímil demais.

Os reflexos foram as igrejas cristãs queimadas em toda a Noruega (algumas milenares, patrimônios da humanidade), depredações diversas de sedes e museus de entidades religiosas e assassinatos de integrantes de minorias, como gays e imigrantes. 

A maluquice culminou com as desavenças internas entre os "integrantes" do "movimento", com brigas violentas e o assassinato, tendo o Mayhem, aquele que teve shows cancelados no Brasil, como epicentro.

A maluquice começou quando Dead, o vocalista original do Mayhem, se suicidou em um ritual satânico, ou coisa parecia, em 1991. A banda continuou sob a liderança de Euronymus e do então baixista Varg Vikernes.

Na disputa para ve quem era o mais idiota, ou melhor, o mais radical, houve desavenças e Vikernes criou a sua banda, o Burzum, com discurso extremo e criminoso. Ideólogo de si mesmo, tomou Euronymus como inimigo pessoal - outrora seu mentor - e provocou um racha no Inner Circle. 

O circulo de insanidade terminou com o assassinato de Euronymus na porta se seu apartamento. Vikernes o esfaqueou até a morte e se vangloriou, sem se preocupar com a autoria.

Preso quase que imediatamente, foi condenado a décadas de prisão, tendo cumprido 21 anos em um presídio que mais parecia um hotel - tinha direito a TV, computador, livros, jornais e equipamento e instrumentos musicais. Gravou álbuns do Burzum na prisão e continuou disseminando suas maluquices repletas de ódio do cárcere. Tornou-se um ideólogo e extrema-direita, apesar de viver recluso.

O Inner Circle desmoronou, mas as bandas da época continuaram na ativa, embora poucas tenham durado. O Mayhm foi uma das poucas e ainda existe.

A cena perdeu força, mas não desapareceu totalmente, atraindo outro tipo de escória, o fascismo de viés nazista, discriminatório, preconceituoso e violento. 

Isolados de todos os ambientes, os fascistas nórdicos - e depois os holandeses, belgas e alemães - encontraram "círculos" férteis para disseminar ódio e pensamentos pestilentos. 

Muitas bandas não se importaram em camuflar suas ligações com essa escória na virada do século até que o governo norueguês teve uma reação implacável ao debelar os círculos neonazistas e destruir as bandas a eles associados. Muita gente foi presa.

Desde então, Noruega, Suécia e Dinamarca exercem uma vigilância pesada nas bandas de metal extremo, a ponto de barrar grupos alemães e poloneses para shows e festivais. 

Segundo especialistas, a Polônia se tornou, a partir de 2010, o centro de uma cena black metal associada a extremismo de todos os topos graças a uma sequência de governos de direita e de viés autoritário eleitos.

Passado que assombra

Embora não seja considerada uma banda diretamente ligada ao extremismo político e de costumeiramente não ser associada ao moimento neonazista nórdico, ao menos dois membros não se esquivaram de "contatos" com algum tipo de extremismo ao longo dos anos. 

Hellhammer afirmou algumas vezes que black metal era para brancos e que não gostava de negros, muçulmanos, sul-americanos e orientais. Anos depois se desculpou, afirmando que ele não era preconceituoso e a banda era apolítica. 

Attila Csihar, o vocalista, teve flertes com teses totalitárias, mas as repudiou em entrevistas, anos depois, quando foi apertado por repórteres. E não teve vergonha de dizer que alguns itens de merchandising da banda continuam suásticas como "forma de chora e provocar", como as bandas punks faziam nos anos 1970. usou o mesmo argumento para justificar o fato de ter subido ao palco vestido como o ditador nazista Adolf Hitler.

Com o radicalismo infantil e debiloide, Mayhem forneceu argumentos e precedentes para se tornar algo de patrulheiros de plantão e para que os fantasmas do passado voltassem para assombrar.

Diante da polêmica, pouco importa a verdade. Por mais que não seja considerada uma banda nazista na Noruega de hoje, os ecos do passado despejam indícios claros de supremacismo branco, racismo e ódio político-ideológico racial, o que dá uma penca de razões para que os patrulheiros ataquem com tudo.

Portanto, não soam como absurdos os cancelamentos de shows do Mayhem no Brasil. Para muita gente que gosta de rock o Mayhem não está plenamente caracterizada como banda nazista, mas não ignoram que os indícios, mesmo não conclusivos, remetem a passado complicado, questionável e nebuloso.

O radicalismo juvenil da cena norueguesa de black metal de 30 anos atrás está cobrando o seu preço. Não faltou só inteligência, mas sim caráter e coragem para se desvincular totalmente de uma cena podre tomada pelo extremismo polítio-ideológico que sempre foi combatido pelo rock.

Ao não se posicionar diante da "infiltração" nazifascista entre as bandas de black metal, muitas bandas foram acusadas de conivência e cumplicidade, quando não de associação, com o extremismo de direita. 

O Mayhem é uma banda monotemática, investindo contra todo tipo de deus e de religião - principalmente contras as cristãs. Manteve o extremismo político de fora dos discos, mas isso não foi o suficiente para espantar as dúvidas de apoio ao fascismo.

Não vai demorar muito para que o Motorhead seja descontruído e cancelado por conta de Lemmy Kilmister (1945-2015) ter sido um notório colecionador de itens da II Guerra Mundial, principalmente de artefatos e uniformes do exército nazista alemão. Aqui não se trata de radicalismo burro, mas de total falta de noção, só que os resultados serão os mesmos, para o bem e para o mal.

Não é tão simples analisar uma cena estranha e diferente como a do black metal, ue tem muitas semelhanças em vários países. na verdade, são coincidências que as empurram, invariavelmente, para o extremismo político de direita. 

Se a fundamentação religiosa (principalmente no Brasil) está descartada, as inclinações totalitárias e o ódio profano e blasfemo é um poderoso fio que extrapola fronteiras e empurra para o abismo. Não dá para discordar de quem considera o mundo black metal o mais misterioso, pantanoso e perigoso das artes mundiais. 

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