quinta-feira, 16 de março de 2023

U2 preguiçoso erra a mão ao revisitar seus clássicos em 'Songs of Surrender'

 Regravar clássicos com a intenção de atualizá-los é um perigo imenso e com resultados geralmente ruins e decepcionantes. Essas decisões erradas têm origem na proliferação de acústicos/unpluggeds no anos 90. em que "novas roupagens" era admitidas em situações em que a criatividade tinha desaparecido.

O mérito do formato ressuscitado pela MTV era que oferecia um produto diferente a um público desacostumado à curiosidade e à pesquisa, em um trabalho arqueológico interessante de resgate de artistas e de canções da melhor qualidade. De quebra, deu fôlego novo a uma série artistas importantes, como Rod Stewart e Eric Clapton.

Por outro lado, estimulou bandas a cometerem o rime de "revisitar" o catálogo e regravar em estúdio, com novas tecnologias e outros arranjos antigos hits históricos. É o caso dos ingleses do Saxon, que decidiram "atualizar" alguns clássico de sua discografia duas vezes - com novos arranjos e de forma acústica, com resultados questionáveis nos dois casos.

O U2 resistiu à tentação dos acústicos, mas sucumbiu à tentação das "regravações". "Songs of Surrender", recém-lançado, é uma reunião de 40 músicas do repertório do grupo em comemoração aos 40 anos de "War", álbum de 1983, de 47 anos de existência.

Baseado no livro "Surrender", de Bono, o vocalista, que é um misto de autobiografia, história da banda e reflexões sobre seu ativismo em prol os direitos humanos, o álbum quádruplo em CD é uma tentativa de observar a história da banda com um olhar novo e mais condescendente, digamos assim.

O resultado é um disco preguiçoso e desnecessário, em que muitas das canções soam como se a cantora de new age Enya tivesse se apropriado das poderosas canções do U2 punk e pós-punk. Dá muito sono.

O quarteto assumiu o risco de que poderia dar errado. Transformar tudo em acústico desidratou tudo a ponto de misturar tudo e retirar todo o poder de canções que tinham energia de usinas elétricas - casos das antiga "Out of Control" e "11 O'Clock Tick Tock", Transformadas em musiquinhas de churrasco, o que emerge são versões desinteressadas. Nem a Legião Urbana ousaria cometer tal desatino.

"Where the Streets Have No Name", uma das cinco melhores da banda, perdeu a contundência e foi gravada de forma desleixada, sem interesse.

As versões, com raras incursões com um piano, mas sempre voz e violão. são protocolares e nada acrescentam. Os arranjos são simplórios e a performance vocal de Bono não muda nada, não inova, não instiga.

Em alguns casos, como "Bad", as novas intervenções desfiguram a música a ponto de estragá-la. Retira dela a dramaticidade que as versões de estúdio e ao vivo continham, como se os músicos se contentassem em fazer uma versão para tocar no boteco.

Praticamente não se salva nenhuma das 40 versões para churrascos de fim de tarde. Faltou alma, faltou paixão e alguma vontade de fazer algo diferente. Faltou ousadia.

"Songs of Innocence" e "Songs of Experience", os dois último discos de estúdio, continuam canções interessantes, e, juntos, forma um conjunto sólido e conceitual a respeito da vida e do envelhecimento. É algo profundo e progressivo, mas bem longe de serem trabalhos populares.

Se o fato de não terem sido estrondosos sucessos abalou a confiança da banda, então era o caso de prolongar o hiato criativo. 

Há casos em que o silêncio é recomendável. E há casos em que é melhor lançar um disco ruim do que se enfurnar na hibernação ou na mansão de praia. Só que, mesmo com um disco ruim em mãos, é necessário ter o discernimento das consequência de um disco ruim na carreira. e 

O U2 apostou forte no fato de que estava propondo um produto diferente e, de certa forma, inovador. A decepção parece ser geral.

Transformar grandes canções em versões intimistas inclusive com mudanças/atualizações de letras, é um sacrilégio e bastante perigoso, ainda que o propósito seja bastante nobre. Não há justificativa aceitável. "Songs of Surrender" mancha legado imenso do U2.

Curiosamente, se havia alguma possiblidade de redenção, ela vem na última canção, a delicada e sutil "40", que encerrava os shows na primeira metade dos anos 80. É a única que não naufragou por conta de sua natureza acústica. Balada por excelência, não foi desidratada e ganhou um tratamento respeitoso. É muito pouco para uma banda colossal como o U2.

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