sábado, 18 de março de 2023

Blitz contra banda acusada de ser nazista abre precedente muito perigoso

 O boicote não é uma criação nova da democracia. Comerciantes de comida de Nova York e Londres sentiram na pele, no século XIX, a ira de consumidores depois que piquetes ocorreram na frente das lojas em razão de supostos abusos de preço.

Na democracia é uma arma poderosa, para o bem e para o mal. Nos quatros anos nefastos do nefasto governo Jair Bolsonaro (PL), empresários identificados como progressistas ou simpatizantes do PT/partidos de esquerda sofreram em cidades pequenas boicotes de cunho fascista. Com menos frequência, também ocorreu o contrário.

O boicote também afeta o mundo das artes, e as maiores vítimas são artistas conservadores, apoiadores de Bolsonaro, e seus simpatizantes (algo perfeitamente compreensível e justificável, já que Bolsonaro odiava a cultura e o mundo das artes). Não são poucos os que reclamam de amplo boicote por motivos políticos, mesmo os caras-de-pau que apoiavam a censura e as recriminações contra colegas progressistas.

No rock esse tipo de movimento acontece com menos frequência, mas costuma atingir os objetivos, como na recente campanha contra a banda norueguesa de black metal Mayhem. Em turnê pela América do Sul, tem uma série de shows marcados no Brasil, mas o de Porto Alegre foi cancelado e o de Brasília corre risco de cair também.

Acusada de apologia ao nazismo, a banda é alvo de amplo boicote por roqueiros ditos progressistas e por campanhas de cancelamento nas redes sociais. A maioria dos "engajados" nunca soube da existência da banda e não tem ideia do que é black metal. Apenas embarcou na onda. Seria ridículo se não tivesse implicações preocupantes.

Alguns evangélicos embarcaram na onda de "satanizar" a banda Coldplay, que está fazendo uma série de shows em São Paulo. Sara Sheeva, pastora e filha dos músicos Pepeu Gomes e Baby Consuelo, afirmou em vídeo nas redes sociais que a música da banda "é do capeta". Nem vale a pena perder muito tempo com essa idiotice. É apenas ridículo, mas muitos evangélicos idiotas entraram nessa onda.

No caso do Mayhem é mais complicado porque a desinformação campeia e se alastra. O vereador Leonel Radde, do PT de Porto Alegre, com base no "alerta" feito por historiadores que gostam de rock, entrou com pedidos de providências no Ministério Publico e na prefeitura para cancelar o show alegando que a banda e nazista. 

O Bar Opinião, que receberia a banda, se antecipou diante da repercussão e cancelou o evento por conta própria, mesmo com as reiteradas manifestações dos noruegueses afirmando que não são nazistas e que odeiam todo o tipo de discriminação.

A informação dos boicotes e do cancelamento surpreendeu fãs e músicos da Noruega. A banda Mayhem é underground e relativamente conhecida entre os apreciadores de metal extremo. Por lá, nunca houve a associação do nome ao movimento neonazista.

O Mayhem é tida como uma banda violentamente antirreligiosa e anticristã, mas jamais nazista, segundo relatos que chegam de Oslo e de pesquisas feitas na imprensa do país nórdico.

O que parece estar acontecendo é que o passado está condenando a banda, ainda que pelos motivos errados. Ex-integrantes estiveram envolvidos com o movimento Inner Circle, composto por extremistas políticos e ideológicos que queimavam igrejas e matavam clérigos e quem fosse religioso. 

O líder e fundador do Mayhem, Euronymus, foi assassinado a facadas em 1991 por um ex-amigo e integrante da banda - o assassino foi condenado e ficou 21 anos preso. 

Outros fizeram declarações supremacistas e racistas na década de 90 e tentaram se retratar anos depois, sem convencer muito - mas ainda assim pediram desculpas. Querem colocar o rótulo de nazistas no Mayhem, diante dos indícios que surgem, é exagero na opinião de fãs do metal extremo e especialistas neste segmento musical.

Linchamento virtual

A banda é nazista? Agora não importa mais. Os sacerdotes do boicote decretaram que sim e danem-se os que pensam o contrário. Tiveram a falta de pudor de usar a boa fé de um ´político decente para atacar e cancelar uma manda sem que provassem suas teses.

Leonel Radde é policial civil e integrante do movimento Policiais Antifascistas. É progressista e considerado um político engajado em causas sociais e contra todo tipo de discriminação. É do bem, mas foi engolido pela maré da desinformação, à primeira vista.

Seja como for, são tempos perigosos em que deslizes do passado, dependendo da situação, são e serão imperdoáveis. No caso de apologia ao nazismo e ao fascismo, é bom que seja assim, mas desde que os alvos sejam corretamente identificados e que as possibilidades de injustiça sejam reduzidas a zero.

 Infelizmente, não dá para ter essa certeza no caso da banda norueguesa. Curiosamente, o Mayhem tocou no Brasil no ano passado e ninguém de deu ao trabalho de boicotar a banda acusando-a de apologia ao nazismo. "Antes tarde do que nunca", dirão alguns. Então quer dizer que sempre há tempo para eventuais injustiças?

Ao menos dois músicos brasileiros de metal extremo, e que pedem anonimato, desconfiam que o boicote tem outras motivações. "Desviaram o foco para mirar outra coisa, que é a postura anticristã dos caras. O verdadeiro alvo é o satanismo, mas sabem que acusar por nazismo dá mais resultado", disse um deles ao Combate Rock.

Uma rápida análise dos álbuns da banda não revela indício de teses nazistas, muito menos de supremacismo branco europeu, como um dos integrantes chegou a defender 20 aos atrás. 

Um jornalista brasileiro, Leandro Demorei (ex-The Intercept), que tem ligações profissionais fortes na Noruega, afirmou no Twitter que o Mayhem jamais foi associado ao neonazismo no país. 

"Não existe essa associação. É um fato relevante quando se trata de um país que é muito mais rígido do que o Brasil no combate ao neonazismo. Lá essa política é muito mais antiga e arraigada na população, que não tolera nenhum tipo de manifestação nazista. Nas vizinhas Dinamarca e Suécia é a mesma coisa", escreveu Demori.

Se essa fúria cancelamentista fosse tão vigilante anos atrás, provavelmente o Motorhead jamais visitaria o Brasil ou outros países nos anos 2000, já que o vocalista e baixista Lemmy Kilmister era colecionador fanático de itens da II Guerra Mundial, em especial de material do exército alemão e uniformes da SS, a tropa de elite nazista.

Nazismo é crime no Brasil e em muitos países do mundo, principalmente no Ocidente. E é assim que tem de ser. Muita gente do governo Bolsonaro se utilizou da simbologia nazista para "expor suas ideias" e foi prontamente denunciada, investigada e retirada de seus cargos. A tolerância deve ser zero.

Passado condena

Os noruegueses do Mayhem têm passado turbulento e deslizes muito preocupantes, mas a acusação de nazismo, aparentemente, não se sustenta até agora. Se o rótulo está sendo usado de forma a mascarar a verdadeira motivação - o "satanismo" e as manifestações anticristãs - isso precisa vir à tona logo.

Se existe alguma lição a absorver deste caso é a cautela necessária para que, em casos semelhantes, haja mais informação, mais análise e menos denuncismo. O precedente aberto é perigoso e pode se estender a vários artistas que até podem ser polêmicos, mas que não merecem ser boicotados.

E é bom sempre lembrar de fatos recentes: a banda Pantera, reformada, tocou no Brasil no ano passado e seu vocalista, Phil Anselmo, foi flagrado em situações de apoio a a fascistas, como fazer saudação nazista em shows e dar entrevistas com camisas de bandas que são abertamente racistas e pregadoras da discriminação. 

Muito maior que o Mayhem, Anselmo foi alvo de muxoxos nas redes sociais e nada mais. De acordo com os critérios dos boicotadores atuais, não mereceria uma campanha muito mais forte do que o Mayhem?

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