Boicotes maciços via internet são mais do que eficientes - definem estratégias e modificam trajetórias. O mais novo exemplo da eficiência desse instrumento fundamental da democracia ocorreu nesta quinta-feira (16) em Porto Alegre tendo o rock no centro da polêmica.
A banda norueguesa de black metal Mayhem teve o seu show cancelado no Bar Opinião por conta pressão nas redes sociais e de um vereador do PT com acusações de que a banda seria nazista, ou que tem um passado nazista.
A campanha de cancelamento deu resultado e o show foi cancelado pela casa de shows - a banda também vai tocar em São Paulo.
Quem encabeçou o boicote com pedido público de providências foi o vereador petista Leonel Radde, que é policial civil e um ativista de esquerda e de direitos humanos. É uma das figuras de ponta do movimento Policiais Antifascistas, que atua em situações em que as forças de segurança demonstram alguma queda pelo autoritarismo.
Radde contou nas redes sociais que foi alertado por historiadores gaúchos que gostam de rock sobre o passado perigoso e controverso do grupo. Ele pediu a intervenção do Ministério Público e das autoridades municiais de Porto Alegre.
Em carta aberta, o Bar Opinião informa foi pego de surpresa com as informações sobre as eventuais posturas dos membros do Mayhem e que, em 40 anos de existência, "a casa sempre prezou pelos valores humanistas e democráticos".
"O Opinião considerou alguns fatos para tomar suas decisões: os movimentos nas redes sociais tanto pró quanto contra o evento, comentários suscitando manifestações no local e imediações do Bar e o potencial risco à integridade física de todos os envolvidos. Por isso, o Bar Opinião não irá receber o show da banda Mayhem. Os ingressos serão devolvidos conforme a forma de pagamento, mais informações serão enviadas por e-mail", escreveu a administração do estabelecimento nas redes sociais.
Eficiente neste caso, a cultura do boicote e do cancelamento costuma ignorar as versões dos acusados, sendo estapafúrdias ou não, tendo alguma veracidade ou não.
Nas redes sociais e em entrevistas recentes, o vocalista Attila Csihar negou que a banda seja nazista e que tem algum merchandising com suásticas apenas para "chocar e provocar". "Eu odeio os nazistas e tudo o que nojento eles representam", disse a uma revista alemã há algum tempo.
O baixista Hellhammer, em um rasgo de sinceridade anos atrás, admitiu que é racista, mas de um modo peculiar: não gosta de ninguém que não seja branco nórdico ou indo-europeu - embora ele não se acanhe de tocar em várias partes do mundo, como ocorreu no ano passado, quando o Mayhem veio ao Brasil.
Esse é um tópico levantado nas redes sociais por conta do cancelamento: só descobriram agora que o Mayhem é supostamente nazista? No ano passado não era? A banda passou incólume nos shows na América do Sul e ninguém se lembrou desse fato ou se deu ao trabalho de lembrar.
Na maioria dos trabalhos da banda não há menções ou endosso a políticas fascistas. "Somos uma banda apolítica e que tem apenas como missão bradar contra as religiões e as doutrinas embasadas no cristianismo", escreveu Csihar nas redes sociais. Até aí, nada demais em relação a uma típica banda de black metal considerada entre as mais extremas, ao lado das polonesas Behemoth, Vader e da norueguesa Gorgoroth.
Quando se analisa o passado turbulento da banda, no entanto, a situação se complica. Muitos d seus membros originais estiveram envolvidos com um grupo extremista em todos os sentidos chamado Inner Circle, que tinha como principal veículo de expressão o black metal no início dos anos 90.
Eram seres problemáticos que adotaram uma ideologia nacionalista mítica de resgate dos valores nórdicos vikings dos séculos IX e X, imputando ao cristianismo a responsabilidade deter demolido o verdadeiro caráter do povo europeu e do povo escandinavo.
Euronymus, multi-instrumentista e vocalista de Mayhem, era um dos integrantes e, dependendo do ponto de vista, um dos ideólogos da turma. Entretanto, ele se afastou logo que o extremismo dominou as ações e foi um dos primeiros a condenar os incêndios criminosos de igrejas católicas milenares na Noruega e os assassinatos de padres e de "opositores" da turma.
Ao repudiar a violência, ganhou a ira de um até então amigo, conhecido como Varg Vikernes, também multi-instrumentista e cantor. Integrou por alguns meses o Mayhem e rompeu de forma violenta com seu mentor.
Inimigos mortais desde então, viviam em confronto permanente em termos de ideais e fisicamente. Vikernes já tinha criado o Burzum como antítese do Mayhem, mas não estava satisfeito. Ele queria "machucar" o desafeto.
Em 1992, Vikernes saiu de casa à noite para confrontar Euronymus e tinha uma faca de cozinha Na porta do apartamento do desafeto, discutiram mais uma vez e o líder do Mayhem foi esfaqueado até a morte. Vikernes celebrou publicamente o "feito".
Preso quase que imediatamente, foi condenado a uma pena longa, da qual cumpriu 21 anos em um presídio da Noruega, país com índices baixíssimos de criminalidade.
Na prisão, com celas não muito diferentes de quartos de hotéis simples, mas confortáveis, Vikernes tinha acesso a TV, jornais, computador e internet. E teve direito ainda a agregar um equipamento de gravação e instrumentos musicais, o que o possibilitou compor e lançar álbuns do Burzum e destilar ódio, raiva e preconceito sem ser incomodado.
Fora da prisão, continua produzindo música, mas vive isolado no interior do país. mas professa o totalitarismo de cunho nacionalista pela internet, abertamente fascista e com toques eugenia - o que falta para mergulhar diretamente no nazismo?
Antigos companheiros de Euronymus resgataram o Mayhem e mantiveram os ataques virulentos contra as religiões, principalmente contra o cristianismo. Praticamente não há traços de de política ideológica na obra da banda, que é repetitiva e pouco original. Para os radicais do black metal, no entanto, cumpre a função de manter "a chama acesa do extremismo anticlerical e antirreligioso", ainda que recorra, algumas vezes, ao satanismo.
Curiosamente, o Pantera desfigurado que tocou no Brasil em dezembro passado foi alvo de alguns protestos por causa do vocalista Phil Anselmo, que fez anos atrás saudações nazistas em um show da banda Down - que liderava - no interior dos Estados Unidos.
Mais atarde alegou que estava bêbado e que não se lembrava do fato, mas existem imagens do show em questão. Também costumava frequentar shows e dar entrevistas trajando camisetas de bandas americanas supremacistas brancas e associadas a movimentos de extrema direita.
Os dois shows em São Paulo rolaram sem problemas e nem se cogitou o cancelamento das apresentações. Por isso surpreendeu o boicote bem-sucedido contra o Mayhem em Porto Alegre.
Por enquanto é prematuro avaliar a pertinência e o acerto do boicote, embora haja indícios bastante discutíveis. O que fica de lição neste caso é que aumentará, e muito, o rigor do escrutínio a respeito do passado de muitas bandas extremas que vierem ao Brasil.
Por outro lado, tenhamos em mente que os tempos são outros e que, se o mesmo rigor aplicado ao Mayhem fosse aplicado, por exemplo, ao Motorhead, é muito provável que jamais veríamos a banda no Brasil neste século.
Só para lembrar: o vocalista e baixista Lemmy Kilmister era um fanático colecionador de itens relativos à II Guerra Mundial, principalmente de coisas relacionadas aos soldados e oficiais da Alemanha Nazista. Ele tinha por exemplo, armas da época e uniformes completos de oficiais da SS...
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