sábado, 25 de março de 2023

Moonspell exalta a liberdade de criação em um mundo diferente


Uma ponte segura que une duas culturas que, aparentemente, se distanciam de tempos em tempos. O maior nome do rock pesado português, o Moonspell, instituição musical europeia, até ainda acalenta o sonho de colocar Brasil e Portugal cada vez mais próximos por meio do rock, ainda que seja difícil esticar as tais pontes.

O vocalista Fernando Ribeiro, uma da cabeças mais lúcidas e cultas do metal mundial, nunca se conformou com o fato de que as turnês latino-americanas de sua banda, sempre intensas, quase sempre apresentam o Brasil como o local com as menores vendas de ingressos.

"Causa-me estranheza que isso aconteça, embora não altere o panorama. Nossa ligação com o país é umbilical, mas imagino que a cena musical fervilhante e diversificada possa te alguma influência. No entanto, serão seis shows em abril no Brasil, o que me enche de orgulho", disse Ribeiro em entrevista exclusiva ao Combate Rock.

Com a turnê “Latin America Fullmoon”, o quinteto formado por Fernando Ribeiro (vocal), Ricardo Amorim (guitarra), Aires Pereira (baixo), Hugo Ribeiro (bateria) e Pedro Paixão (teclados) passará por São Paulo, Porto Alegre, Curitiba, Limeira, Brasília e Belo Horizonte.

Em um mundo muito diferente, principalmente depois da pandemia de covid-19 - que ainda não acabou -, é gratificante observar a paixão com que o músico português fala de música e da arte. 

Ribeiro valoriza a liberdade que a banda tem ao compor, produzir e tocar em um momento em que o rock não está no topo das preferências. É uma fé que justifica os quase 30 anos de trajetória bem-sucedida, ainda que o quinteto permaneça no underground.

"Se não sou rico, nem famoso, isso não importa. Tenho liberdade criativa e consigo não chegar a toda a gente, mas à gente 'certa'", comentou o vocalista. Leia os principais trechos da entrevista:

A pandemia de covid-19 afetou de forma séria nossos países, embora as consequências no Brasil tenham sido mais severas por conta de uma série de motivos. Como a banda atravessou o período mais difícil do distanciamento social? Além da paralisação de shows, como afetou os processos criativos do Moonspell?

Fernando Ribeiro - A covid-19 foi uma calamidade, tanto social como epidémica e provocou uma ainda maior cisão entre as pessoas comuns, o que é sempre de lamentar. Penso que só daqui a um par de anos conseguiremos discernir o verdadeiro alcance do que nos aconteceu, embora nunca iremos conhecer a “verdade” dos fatos - está fora do nosso alcance. O primeiro instinto foi tentar compreender e, à distância recomendada, unir a banda e tomarmos conta uns dos outros. Não me envergonho de admitir que, quando os shows paralisaram, tratei de cobrar as dívidas de direitos das sociedades de autores e afins, que nem sempre pagam a horas, e comecei a desenvolver algumas ideias para apoiar a banda e a nossa equipe. Recaiu sobre mim muita pressão e responsabilidade e nunca tive a atitude leviana de dizer, como li a muitos músicos, que até tinha sido bom “dar um tempo nas turnês”.   A criatividade, que é livre de amarras, foi essencial para o equilíbrio vital do Moonspell e continuámos a composição do Hermitage, que tinha iniciado em 2017. Cada um em sua casa, mas focados no trabalho.

"Hermitage", o último de trabalho de estúdio, apresentou o Moonspell olhando para novos horizontes em todos os sentidos quando a banda completou 25 anos de carreira fonográfica. O que a maturidade trouxe de mudanças no som da banda, na perspectiva de vocês? E o que isso influencia em um eventual novo trabalho de estúdio?

Concordo que "Hermitage" seja, talvez, o nosso disco de maior maturidade. Pelo contexto, assunto, musicalidade, é um disco de homens na meia idade, tentando conferir alguma dessa experiência ao nosso som. Por outro lado, eu não sei muito bem definir a “evolução” do Moonspell porque ela foi espontânea, autêntica. Fruto de alguma insatisfação, de curiosidade por outros sons e bandas, não há nada a justificar, assim aconteceu, sem fórmulas, apenas músicos lutando contra as suas limitações e a favor da sua vontade em incluir várias sensibilidades na composição. O próximo disco será feito com calma. editaremos somente em 2024 ou 2025. Eu gostaria de regressar a canções mais simples, optar por uma mistura mais nítida entre Gótico e Metal, não repetir o lado prog e ter um conceito mais inteligível, mas ainda vai sendo cedo para definir essas metas, tudo pode mudar.

A banda caminha para os 30 anos de existência. Surgiu em um mundo musical muito diferente, onde o rock e o heavy metal estavam em alta. Três décadas depois o mercado fonográfico implodiu, a música ficou de graça e a relação das pessoas com a música, no mundo inteiro, mudou muito. Não há mais um vínculo afetivo, tudo está muito veloz e descartável. Para vocês, como artistas, é difícil lidar com tais mudanças?

Sim, a música muitas vezes é apenas um acessório e deixou de ter um aspecto tão central nas nossas vidas cotidianas. Sinais dos tempos. Eu tive sempre a ousadia de me definir como um artista, mas, hoje em dia, me sinto mais como um animador, que, sem desprimor, tem a bonita missão de tirar a cabeça das pessoas dos problemas graves de crise generalizada, que vivemos em tempo real. Há algo de pensamento mágico nisso. Por outro lado, não há como não aceitar os termos desse pacto demoníaco que é hoje a indústria musical e a pouca atenção das pessoas. Moonspell corre muito pelas margens, pelos nichos e vamos conseguindo fazer vida disso, também porque nos soubemos adaptar aos tempos, não exagerar na exposição (eu não passo o meu tempo “partilhando”) e gerir as expectativas financeiras e de sucesso. É um preço que temos de pagar para manter a vivência da música e o amor pela mesma. E esse amor derruba fronteira e muros que pensávamos inabaláveis. Se não sou rico, nem famoso, isso não importa, tenho liberdade criativa e consigo não chegar a toda a gente, mas á gente “certa”.

Continuando no mesmo tema, imagino que um álbum importante como "1755" teria mais dificuldades hoje para obter a devida atenção por ser um trabalho denso e com grau alto de informação. Ainda faz sentido gravar álbuns, e alguns como esse? 

Para obter essa tal atenção que você fala, teríamos de dar uns passos que iriam, fundamentalmente, roubar todo o prazer que temos na identidade do Moonspell. O "1755" é até um exemplo perfeito. A editora queria um EP e nós assim o fizemos (chamava-se "Ruínas") e tinha apenas quatro temas, mas, enquanto íamos escrevendo música, fomos nos entusiasmando e acabámos por fazer um álbum completo. Na verdade, nem estávamos a pensar na parte comercial do disco, ou se as pessoas iam acompanhar um disco que combinava metal com história (de Portugal), cantado em português. E essa “inocência” nos permitiu fruir do sucesso em fazer um disco assim, inaugurar um novo capítulo da música da banda (que queremos retomar em breve, assim haja conceito e vontade). Para nós fez e fara sentido, o resto não sabemos mas não vamos seguir regras que, para nós, não fazem muito sentido. Ppara que ter uma banda se não para combater as regras?

Muito se fala que o público brasileiro e alguns artistas daqui viram as costas para a produção musical da América Latina, pouco difundida entre os brasileiros - e esse comportamento, de certa forma, se estende aos artistas portugueses de rock. Apesar de uma boa presença do Moonspell no Brasil ao longo dos anos, você concorda com essa percepção de parte do mercado de que o Brasil se importa pouco com o rock português? 

Não sei avaliar muito bem. Só sei que o Brasil é uma nação musical e Portugal pouco mais que uma aldeia, comparado. Acaba por ser também uma questão quase política, infelizmente. Eu lanço na Europa heavy metal do Brasil, como Troops of Doom e, em breve, The Mist... Não consigo enviar cópias de cortesia às bandas, por causa da alfandega. É ridículo que não haja um tratado comercial entre países que tem história e cultura em comum. Por outro lado, eu vejo Sepultura, entre outros, colaborando e convivendo com artistas de outros gêneros musicais, numa boa. Em Portugal, quando o Moonspell chega a um site, os outros artistas parecem nem levar a sério, há uma bolha que nos separa. Quando começamos a tocar no continente americano, era no Brasil onde que vendíamos menos bilhetes. Era meio estranho. México e Chile estavam sold out e Brasil a meio gás. Até nesta tour, isso irá acontecer, mas nem por isso deixamos de voltar e de ir à luta. O "1755" e a participação no Rock in Rio mudaram um pouco as coisas, mas não muito. Não considero que seja justo considerar tudo como um esnobismo cultural da parte do Brasil. Eu acho que Portugal sempre pensou pequeno em termos culturais e musicais, e as coisas estão bem piores. O mal, no entanto, é geral. A curiosidade é a base da criatividade, da cultura. E agora em que em meros segundos encontramos o que queremos online, e de graça, não há desculpas. A música é um estado de alma. De vez em quando quero ouvir folk galego e escuto; outra quero ouvir "Construção", do Chico Buarque, ou o "Phantasmagoria", do The Mist ou gótico russo e basta um clique. Se os outros não o fazem, não é um problema meu.

Moonspell é um conjunto que costuma oferecer algo mais aos fãs, e algo diferente, como o projeto "Lisboa Under the Spell". Podemos esperar algo inovador ou, ao menos, diferente no médio prazo?

Nós tivemos o "From Down Below", álbum ao vivo gravado a 80 metros de profundidade numa gruta em Portugal (Mira D’Aire) perante 100 fãs, no pico da pandemia, interpretando o disco "Hermitage" na íntegra. Gostaria de tocar o "1755" com coro + orquestra na zona do impacto, Praça do Comércio em Lisboa; ou, quem sabe, um outro concerto num sitio museológico ou natural em Portugal. Ainda tenho algumas ideias fora do baralho, mantenham-se atentos! 

A mudança de governo no Brasil trouxe alívio e esperança para parte expressiva de sua população, principalmente por conta de ameaças à democracia e manifestações violentas da extrema-direita. No convívio com brasileiros em Portugal é possível notar essa mudança? Isso, de certa forma, pode influenciar alguma expectativa de vocês para as apresentações por aqui? 

Curioso como a política, que devia servir de mediador da coisa pública, se tornou num objeto de cisão tão profunda, não só no Brasil, como em todo o mundo. Eu desprezo profundamente a política e os políticos. Gostava que se tentasse outro tipo de gestão, mais social, porque não abolindo os partidos políticos (como escrevia Simone Weill) e entregando-se a res publica a uma associação de notáveis, de filantropos, sem corrupção, mas sei bem como isso é utópico. Temos uma comunidade brasileira muito forte em Portugal, acho que nunca tivemos números assim. Constitui uma porção significativa da população em Portugal e, por isso, também tem as suas complexidades. Eu fui a um show da Nervosa, em Lisboa, e curti muito o fato de que metade do público era formado por brasileiros vivendo em Portugal. A festa foi bem maior, já que o "tuga" (portuga, de português) é mais reservado. Acho que a diáspora brasileira pode dar muito ao nosso país, mas é necessário que, num contexto de crescimento da extrema-direita em Portugal, se criem leis e condições para que a comunidade se sinta segura e em casa. Não pode ser cortar fitas e chamar país irmão ou chorar o “ouro perdido”. Acima de tudo, sinto que Brasil e Portugal ainda se conhecem mal ou vivem com perspectivas passadistas, e há que trabalhar nisso. Em todo o caso, a música tem uma função diametralmente oposta a da politica, pelo menos, a do Moonspell: procura unir e ser um espaço seguro, livre de ideologia politica, puro entretenimento e, quem sabe, uma forma de arte. Essa é a minha expectativa para os shows no Brasil: ultrapassar qualquer contenda, em nome da música que se ama.

Datas no Brasil:

7 de abril: Porto Alegre (RS) – Bar Opinião 
8 de abril: Curitiba (PR)
9 de abril: Limeira (SP) – Mirage Eventos 
11 de abril: Brasília (DF)
12 de abril: Belo Horizonte (MG)
13 de abril: São Paulo (SP) – São Paulo Metal Festival


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