Começou ainda nos anos 80, quando surgiram formações desfiguradas de bandas clássicas, com apenas um ou dois integrantes originais ou clássicos, mas secundários. E então vimos fantasmas como Beach Boys, Yardbirds, Creedence Cleawater Revival (renomeado para Creedence Clearwater Revisited) e algumas outras reencarnações pouco inspiradas.
Na década seguinte, foi a vez dos grandes tributos endossados pelos próprios artistas originais ou empresários que detinham direitos autorais. Eram formações impressionantes e tecnicamente impecáveis, mas que nada mais eram do que bandas cover, como o prestigiado Australian Pink Floyd.
Com a proliferação desse tipo de tributo neste século, depois de algum tempo sem que ganhassem muito destaque, surgiu a dúvida: será esse o futuro do chamado classic rock que ainda sobrevive?
A questão ganhou volume no começo deste ano depois que, mais uma vez, o baixista e vocalista do Kiss, Gene Simmons, comentou a possibilidade de a banda continuar sem ele e o cofundador Paul Stanley, guitarrista e vocalista.
Os dois são septuagenários e confirmaram que farão mais uma turnê de despedida em 2023 e 2024, o que não significa, segundo Simmons, que a banda acabe ou pare de gravar músicas inédita.
Ou seja, um dos chefes admite claramente que o Kiss pode virar cover de si mesmo, com um rodízio de músicos conhecidos ou não.
Será que os fãs topariam essa banalização da história de uma das maiores bandas de todos os tempos? Uma banda icônica que se transformaria em um mero produto sem a identidade original?
Para uns será um sacrilégio; para outros, apenas a preservação nos palcos de uma memória afetiva de uma época bacana, mas que não representará mais muita coisa - quem sabe rodar um DVD ou ver um show antigo no YouTube não seja melhor do que ver uma simples cópia, por melhor que seja?
Se isso ocorrer, não será a primeira vez na história da música pop. De acordo com o Guinness Book, o livro dos recordes mais famoso do mundo, uma das bandas musicais mais antigas em atividade é a brasileira Demônios da Garoa, em atividade há 80 anos.
Com certeza é a de samba mais antiga e, como era de se esperar, seus fundadores já morreram. Ao longo das oito décadas, muitos filhos e netos os fundadores e de músicos que entraram depois fizeram parte da banda. Se os Demônios da Garoa podem, por que não o Kiss, ou o Queen, ou o Deep Purple, ou o Iron Maiden?
Brian May e Roger Taylor, os septuagenários fundadores do Queen, optaram por uma saída alternativa enquanto decidem se ressuscitam o Queen com o cantor Adam Lambert, vencedor de reality show e substituto do estupendo Paul Rodgers: endossam bandas tributo que são verdadeiras empresas de entretenimento.
O Queen Extravaganza é o "tributo oficial", digamos assim. Surgido na Inglaterra, lota casas de espetáculos pelo mundo afora. Seu vocalista principal é o brasileiro Alírio Netto, que ocupa o posto há alguns anos e foi escolhido com o aval de May.
O trabalho da banda é impecável e diverte bastante, mas não percamos de vista o que é: uma banda tributo, da mesma categoria dos shows que brotam em todo o mundo com alguém se caracterizando de Elvis Presley em cruzeiros temáticos.
Em conversa com o Combate Rock, o excelente Alírio Netto passou ao largo da discussão porque ele mesmo entende que o Queen Extravaganza é uma banda tributo e que nem em sonho imagina que o projeto possa ocupar, de alguma forma, o lugar do Queen. No entanto, no fundo, é o que vai acontecer quando Bran May e Roger Taylor se aposentarem de vez ou morrerem.
Guardadas as devidas comparações, é o que acontece com a finada banda britânica Dire Straits, que desaparecem por volta de 1993 por decisão de seu líder, o guitarrista e vocalista Mark Knopfler.
Dire Straits Legacy é o nome de banda que existe há anos com um ou dois ex-integrantes do grupo original acrescido de músicos de apoio executando clássicos como "Sultans of Swing" e "Money For Nothing" sem sabor algum. essa banda meio cover meio tributo virá ao Brasil, mais uma vez, neste ano.
Se a continuidade de bandas sem seus principais integrantes não é uma novidade, como os Demônios da Garoa demonstram, é uma total raridade no rock internacional de primeira prateleira - e mais ainda quando um dos líderes/chefes admite a sério que o conjunto pode (deve?) virar uma franquia de si mesmo.
É o caso do projeto musical Trans-Siberian Orchestra, dos Estados Unidos, criado pelo produtor e empresário Paul O'Neill e pelo tecladista e vocalista do extinto Savatage, de metal progressivo. No estúdio o projeto tem músicos fixos, mas nas turnês a formação varia.
O sucesso é tão grande que os proprietários do projeto decidiram inovar: criaram três Trans-Siberian Orchestra, que percorrem os Estados Unidos ao mesmo tempo em várias partes do país (óbvio), mas executando repertórios diferentes, já que cada álbum gravado (cinco até agora) se refere a uma ópera-rock/musical teatral diferente.
Como um músico expert em marketing, é impossível que Gene Simmons não tenha pensado nisso. Por que não criar quatro ou cinco Kiss para tocar mundo afora ao mesmo tempo?
Será que outro gênio do mercado e das finanças, Mick Jagger, não tem ideia semelhante para os Rolling Stones para quando ele e Keith Richards pararem ou morrerem (se é que um dia Richards vai morrer...). Afinal, os dois completam 80 anos em 2023. Para uma empresa como os rolling Stones, o show não pode parar.
E como seria no Brasil? Que tal uma turnê dos Titãs de 50 ou 60 anos com apenas um integrante? E que tal um Sepultura sem Andreas Kisser, eventualmente, na celebração de 50 anos de existência, em 2034?
E se o baixista Nelson Brito quiser se aposentar? O Golpe de Estado poderia ser a versão roqueira dos Demônios da Garoa? Brito é o único fundador ainda na banda.
E que tal estender esse raciocínio para a Patrulha do Espaço? O único membro clássico e fundador é o baterista Rolando Castello Júnior. a banda continuará sem ele, como ocorre atualmente com o Gong, grupo britânico liderado pelo brasileiro Fábio Golfetti (Violeta de Outono)?
O Gong, que completou 55 anos de atividade, leva adiante a legítima ideia de Simmons para o Kiss, já que foi fundada nos anos 60 pelo australiano Daevid Allen, vocalista e violonista que morreu em 2015.
A banda segue firme gravando e fazendo turnês com uma formação multinacional - muitos fãs nem se lembram de Allen, e os mais novos nem sabem quem ele foi. É pouco provável que esse tipo de coisa ocorra com o Kiss ou Rolling Stones, mas o exemplo está aí: o Gong pode ser o futuro do rock clássico.
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