quinta-feira, 23 de março de 2023

O pico do ecletismo inflamável do Roxy Music faz 50 anos

Caio de Mello Martins - publicado originalmente no site Roque Reverso

Puxe um papo sobre o Roxy Music cá por essas bandas tupiniquins, e em 99% das vezes as pessoas reagirão com cara de tacho. “Não conheço, não sei quem é.” Mas, jogando os nomes de Bryan Ferry e Brian Eno na conversa – respectivamente vocalista e tecladista da primeira encarnação da banda – já é possível iluminar a cabeça do interlocutor, ainda mais se ele já tiver adentrado a casa dos “enta”.

Hits oitentistas de Ferry como “Don’t Stop the Dance” e “Slave to Love” cimentaram a imagem dele como um baladeiro de mão cheia, seus ritmos suaves embalando casais curtindo luas-de-mel em resorts caribenhos.

Brian Eno é simplesmente um dos maiores produtores da indústria fonográfica dos últimos 50 anos, assinando parcerias aclamadas pela crítica (caso de David Bowie e Talking Heads) e pelas massas (U2 e Coldplay). 

Sua carreira solo é menos famosa porém de relevância ainda maior pelo fato de Eno ser um dos maiores responsáveis pela popularização da música ambiente (nerds vão adorar saber que ele compôs o tema de inicialização do Windows 95).

Em 23 de março de 1973, Bryan, Brian e outros quatro colegas lançavam “For Your Pleasure”, o segundo álbum do Roxy Music.

 Se você achou que a junção do futuro crooner da era yuppie com o futuro mago da orquestração eletrônica resultaria num álbum chato pra cacete, achou errado!!

 No programa sobre Roxy Music do “Choque de Cultura” que nunca existiu (afinal música é coisa de drogado, já diria Rogerinho do Ingá), aprendemos que esse segundo álbum não só consegue ser ainda mais esquisito do que o antecessor, mas também rende muitos orgasmos musicais com uma mistura ousada de hard rock, cool jazz, soul music, Broadway dos anos 1930, vanguarda experimental clássica, rockabilly e R&B selvagem a la Velvets.

(Definição de orgasmo musical: estado de êxtase movido pela música envolvendo movimentos de lipsync, “air guitar” ou “air-qualquer-coisa”, contorcionismo, caretas e danças, resultando em exaustão e sudorese típicos de um estado pós-coito)

A formação da banda não era nada convencional. Bryan e Brian nos teclados – um no piano elétrico, o outro manipulando grandes geringonças que eram os sintetizadores, osciladores e mellotrons da época; Andy MacKay no saxofone e oboé; Phil Manzanera na guitarra e Paul Thompson na bateria (desde a saída do baixista original Graham Simpson, o cargo ficou vago durante a maior parte da carreira do Roxy, preenchido por colaboradores ocasionais – neste álbum escutamos o baixo de John Porter). Este seria o último álbum do Roxy Music com Bryan e Brian, já que o Brian com “i”, em rota de colisão com seu quase-xará, deixaria a banda logo depois.

Thompson e Manzanera tinham raízes fincadas no rock; Thompson fornecia aquela levada sólida, com viradas ágeis, marcações firmes e a regularidade de um bom baterista de rock. Manzanera fazia sua guitarra ecoar com altos níveis de distorção, trazendo nos solos aquele calor dionisíaco como contraponto aos arroubos do sax de MacKay e ao formalismo de Bryan e Brian. 

A combinação de MacKay com Eno era um dos trunfos da banda – MacKay tocava seu sax ora no cativante terreno do R&B, ora na onda lírica de Miles Davis, ou então contribuía com a elegância contemplativa do oboé. E Brian Eno, fazendo jus à sua extravagante apresentação nos palcos, emprestava tons os mais exóticos. 

Em diversas faixas é possível ouvi-lo não por meio de métodos convencionais de composição como frases, acordes e melodias, mas por “tratamentos” de estúdio que adicionam aos outros instrumentos diferentes texturas, aguçando as sensações evocativas que a música traz e, dessa forma, potencializando seu impacto – um impacto multissensorial.

A quarta faixa do álbum, “Editions of You”, reserva um dos momentos mais emblemáticos da história do rock. Brian Eno toca um solo totalmente atonal de pouco mais de 30 segundos com seu VCS3 Synthesizer. O que se escuta não é um aparelho feito para emular a função de outro instrumento acústico ou eletroacústico, mas sim o puro som da eletrônica. 

O som de máquinas rangendo e se expressando em toda a artificialidade de seus circuitos e sinais eletrônicos. Mark Mothersbaugh, um dos líderes do Devo, considera esta performance específica de Eno como aquela que definiria os rumos da música eletrônica como um gênero musical independente.

E ainda há a figura de Bryan Ferry, principal compositor do Roxy e o grande regedor do som. É difícil pensar num frontman de rock tão anti-rock quanto Ferry. Metido em ternos das mais espalhafatosas cores, gravata borboleta e um topete impecável, Ferry era a encarnação do dândi, o esteta decidido a fazer de sua vida uma obra de arte. 

Ferry cresceu na aridez do norte industrial inglês idolatrando Fred Astaire, Frank Sinatra e outros grandes cantores da era de ouro de Holywood.

Sua formação seria acrescida mais tarde de um mergulho nas artes plásticas: Ferry era estudante de Belas Artes na Newcastle University, onde tinha como professor Richard Hamilton, um dos maiores nomes da Pop Art, autor da famosa tela “Just what is it that makes today’s homes so different so appealing?”

Investindo pesado na ambiguidade, Ferry mistura todo o glamour e charme da fase clássica da Broadway com as meditações da Art Pop sobre história e sociedade: a frivolidade da sociedade de consumo de massas, a descartabilidade da produção cultural em tempos de mass media, o narcisismo dos “quinze minutos de fama” de Andy Warhol que as plataformas de indústria cultural fomentam. 

O que sai disso é um traço de decadentismo e “fadiga moral” que dá ao vibrato de sua voz de chanteuse uma dimensão francamente vampiresca.

Diretamente inspirada pela obra de Hamilton, “In Every Dream a Heartache” passeia pela perfeição artificializada de uma cobertura de luxo, onde o narrador faz juras de amor a uma boneca inflável que é seu objeto de devoção e fetiche máximos – até que ela explode!

 Na já mencionada “Editions of You”, uma declaração de amor sob medida para os tempos modernos: melhor do que você, só “duas você” – de preferência em versões customizáveis para satisfazer a megalomania que não só habita todos nós mas é açulada por nosso cotidiano. 

“Do the Strand” brinca com o “twist”, o “mashed potato” e tantos outros “passinhos” do universo do rock dos anos 1950 para apresentar a última nova febre, o “strand”. Relembrando o can-can, o beguine e outras febres da era pré-rock em cabarés e salões dos anos 1930, ao mesmo tempo chamando Mona Lisa, Vaslav Nijinski e o Rei Luís XVI para o baile, Ferry mostra o quão absoluto é o “strand” – uma dança que é um suco de história e uma geleia de arte low-brow e hi-brow.

“For Your Pleasure” conseguiu a proeza de emplacar o quarto lugar nas paradas de sucesso da Inglaterra (UK Chart) com oito faixas que não têm refrão. 

Estruturalmente simples, as canções reservam um espaço na midpart para improvisações sensacionais, seja de Eno, MacKay, Manzanera e até mesmo de Ferry, que toca uma gaita pra lá de nervosa em “Grey Lagoons”. 

Em duas músicas – “Do The Strand” e “Beauty Queen”, as faixas que abrem o álbum – as midparts não contêm um solo em si, mas ouvimos linhas independentes de baixo, sax e guitarra se entrelaçando em um grande frenesi de big band – parece que tudo vai desmoronar, mas a banda demonstra níveis absurdos de entrosamento e química para manter a sincronia entre todos os elementos e ressoar em polifonia. Mágica.

O conceitualismo e o ecletismo do Roxy foram irresistíveis para crianças e adolescentes de sensibilidade artística crescendo da Inglaterra e nos Estados Unidos dos anos 1970 – deslocados em meio ao cenário mainstream com suas superbandas de progressivo, seus ídolos do hard rock e seus cantores folk confessionais. 

Siouxsie Sioux conheceu o futuro baixista dos Banshees em um show do Roxy Music. Morrissey nomeou “For Your Pleasure” o “melhor álbum britânico de todos os tempos”. 

O vibrato da voz de Ferry se faz presente em muitas das vozes do synth-pop e pós-punk como David Sylvian (Japan), Philip Oakey (Human League), Jerry Casale (Devo) e David Byrne (Talking Heads).

Esta relação umbilical do Roxy Music com a geração posterior não poderia estar mais acentuada do que na faixa-título de “For Your Pleasure”, que encerra o álbum com seu mix lânguido de guitarras e teclados reverberando no éter. 

A música termina aos poucos com uma cacofonia construída por Brian Eno, que combinou a gravação da linha de teclado em várias fitas para editá-las em diferentes velocidades, ou reproduzindo-as de trás para frente, produzindo sincopações e até efeitos percussivos a partir do looping.

Adepto de um método chamado de “estratégias oblíquas” – um sistema composto com o que parecem cartas de tarô contendo diretivas feitas para tirar o artista de bloqueios criativos –, Brian Eno reutilizou os vocais de uma faixa do álbum anterior (a sinistríssima “Chance Meeting”) para picotá-los e gerar um coro tão dramático quanto abrupto (pense no final de “A Day In The Life”).

Este seria o último registro da colaboração Bryan-Brian, mas não seria o fim do Roxy Music. Para o lugar de Eno a banda chamou Eddie Jobson, que chegou da banda de prog Curved Air com apenas 18 anos. 

Jobson não era apenas tecladista mas também um violinista de mão cheia, e gravou três álbuns entre 1974 e 1975 (“Stranded”, “Country Life” e “Siren”), todos alcançando o Top Five da UK Chart. Em 1976, no entanto, com Ferry gastando mais tempo com sua carreira solo, a banda entrou em hiato, retomando as atividades em 1978 e produzindo outros três álbuns (“Manifesto”, ‘Flesh + Blood’ e “Avalon’).

Já Brian Eno inaugurou sua carreira solo no ano seguinte à sua saída, com “Here Come the Warm Jets’ (que conta com participação de seus antigos companheiros de banda MacKay, Manzanera e Thompson) e “No Pussyfooting”, uma parceria com Robert Fripp, líder do King Crimson. 

Nos anos seguintes, em paralelo à carreira solo, Eno também gravou um álbum com o trio alemão de kraut-rock Harmonia e em 1977 ajudaria a conceber a chamada “Trilogia de Berlim”, a trinca de álbuns co-produzidos com David Bowie quando o camaleão se realocou para a então metrópole cindida entre Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental.

Se a marca de “For Your Pleasure” no imaginário britânico foi inegável, seu impacto nos Estados Unidos foi bem menor. Nem mesmo a presença na capa da modelo Amanda Lear, antiga musa de Salvador Dalí e então namorada de Ferry, animou as vendas.

A banda levaria mais nove anos até conseguir alguma certificação de vendas pela RIAA (a associação que representa a indústria fonográfica por lá), com o mega hit “More Than This”. 

Em uma entrevista da época para o semanário musical britânico Sounds, Bryan Ferry se queixa que o “público americano de alguma forma não é tão inteligente quanto o britânico”, pois “as coisas mais óbvias são as que mais apelam para eles”. 

Realmente Roxy Music e Tio Sam nunca se bicaram – pior para nós, brasileiros, que sempre fomos caixa de ressonância do mercado da indústria fonográfica norte-americana.

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