Houve um tempo em que havia medo nas escolas. Professores castrados pela censura se limitavam a ministrar o conteúdo restrito e desidratado imposto por uma ditadura militar que fazia a elegia da ignorância, como nos tempos bolsonaros recentes.
Isso ocorria nas escolas públicas e particulares, mas era particularmente mais cruel em muitas escolas vinculadas à Igreja Católica, onde a censura oficial, que era política, andava lado a lado com a censura moral imposta por uma visão religiosa quase medieval - eram os difíceis anos 70, onde a arte popular era vista como altamente subversiva e perigosa;.
Neste mundo de trevas, a maioria dos professores eram mulheres escolhidas muito em função de sua disposição de ensinar um pouco mais do que o básico e seguindo estritamente a linha conservadora.
Guarulhos, cidade da Grande São Paulo a apenas 12 quilômetros da capital, São Paulo (tomando-se por base o caminho mais curto, da Praça da Sé até a divisa com a Vila Galvão, pela zona norte), era tão distante e provinciana quando São Gabriel da Cachoeira (AM) ou Cabul, no Afeganistão. Hoje é a segunda mais populosa e rica do Estado de São Paulo, mas não era assim há quase 50 anos.
Nos principais colégio católicos, o Claretiano (para homens) e Virgo Potens (para mulheres), só adotaram classes mistas em 1976 em uma tentativa de modernizar suas posturas, currículos e visão de mundo.
O número de homens dando aulas aumentou, mas logo causou problemas por conta dos de "humanas", que insistiam em adotar "procedimentos inadequados e proibidos", além de conversar "coisas desagradáveis" com os alunos, como filmes de Glauber Rocha e músicas de Caetano Veloso e Raul Seixas".
Estudei em uam das primeiras turmas mistas do primário no Virgo Potens (Virgem Poderosa, em latim) no centro de Guarulhos, administrado pela ordem das freiras vicentinas, altamente conservadoras e vigilantes em relação à moral e bons costumes. Iludidas achava que poderiam barrar o progresso e o modernismo com peneiras.
Minhas sete temporada neste mundo foram fundamentais por me tornar anticlerical e antirreligioso, o que me fez não ter apreço nenhum por escolas religiosas, principalmente as católicas.
Não era desagradável para as crianças de seis a onze anos, que se irritavam apenas com o rigor em relação ao comportamento mais exaltado e as brincadeiras mais pesadas e a tendência das "lutas" entre os meninos e as constantes brigas nos jogos de futebol do recreio entre os mais velhos, colegial.
Entretanto, muito cedo percebi como são desprezíveis do ponto de vista conceitual e ideológico, digamos assim. Despejam lixo moral e conservador e muitas delas flertam com o fascismo.
Dito isso, no entanto, lamento o encerramento das atividades do colégio Virgo Potens, mais pelo lado sentimental. Fez parte de bons tempos de minha infância feliz de classe média esforçada. Fiquei lá de 1976 a 1982 e tenho boas lembranças, por mais que o local tivesse mais defeitos do que virtudes pelas razões já mencionadas acima. Era uma instituição importante e tradicional, no bom e no mau sentidos
No básico, na alfabetização e na formação humanística, no antigo primário, cumpria bem a sua função, desvirtuando no antigo ginásio o que era bom.
Amargou a crise das instituições religiosas do tipo nos anos 90, assim como "rival", o colégio Claretiano, engolidos por instituições mais modernas como o Integrado e as escolas da marca Objetivo.
Também perderam muito público para as escolas estaduais, como o Conselheiro Crispiniano, o Homero Rubens de Sá e Jocila Pereira Guimarães, com a queda brutal de renda das famílias de classe média neste século.
O Virgo Potens durou 78 anos, tempo demais quando se olha a sua crise da última década e sua dificuldade em se adaptar a um mundo mais liberal-moderno, de um lado, e mais evangélico, de outro.
No estertores da ditadura militar, era um colégio que supostamente era um baluarte do conservadorismo e contra ideias progressistas de qualquer tipo. A demolição de tais "barreiras" demorou mais do ue se esperava.
Quando o assunto era arte, o conteúdo era "parnasiano", assim como na literatura. Música? Alguma coisa erudita, tipo Carlos Gomes e Villa-Lobos, e cantigas folclóricas ao modo Monteiro Lobato, dos anos 40. Jazz era uma coisa subversiva, ao ponto de Tom Jobim e bossa nova não existirem para s vicentinas.
Por volta de 1980, o maior alvo da fúria das freiras tinha a forma de uma inocente fita cassete Basf de 60 minutos, virgem, que eram contrabandeadas pelos professores mais progressistas e passadas de mão em mão entre os alunos ávidos por conhecer e Black Sa Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath, band de rock pesado consideradas "velhas e decadentes" - na época, as duas primeiras nem existia mais.
As freiras mais histéricas faziam blitze nos uniformes e mochilas e, de vez em quando, apreendiam o "objeto do pecado". Era inútil, porque o dia seguinte outras cinco cópias circulavam pelo pátio.
Só podíamos ouvir em casa ou na van escolar - ou no carro de um pai que tivesse toca-fitas. O walkman da Sony só surgiria dois anos depois e, no Brasil, chegaria apenas em 1984 - e com preços altíssimos
Assim como Caetano, os Beatles eram vistos com maus olhos pelas freiras, algo que contaminou ate mesmo muitos pais. Elis Regina? Era uma cantora perigosa, que cantava músicas subversivas. Rolling Stones? Depravados, a ponto de revistas Veja com uma inocente reportagem sobre eles ser recolhida na sala de aula e o portador, repreendido.
Ironicamente, foram as fitas cassetes com o rock de sempre e o incipiente rock nacional que começaram a demolir o mundo encantado de deus das freiras. Logo os alunos do antigo colegial começaram a contrabandear tocadores e gravadores de fita-cassete portáteis para o pátio de recreio, banheiros e salas vazias.
O anfiteatro foi sorrateiramente invadido por meninas e meninos com violões ruins e revistinhas de cifras. E então Caetano, Gilberto Gil e Rolling Stones invadiram o Virgo Potens.
Precisando faturar para dar conta do caro quadrilátero e área nobre do centro da cidade, mais turmas form abertas, assim como foi criado o turno da noite, além de cursos extras para quem ainda fazia o "curso normal". Muito mais gente circulando, menos controle ideológico e moral.
Com o tempo, o medievalismo sucumbiu e o Virgo Potens virou um colégio particular como qualquer outro. Ainda tinha a peculiaridade de ministrar aulas de religião, mas com cada vez peso menos.
Já em 1988 o rigor moral conservador asqueroso era passado e e novos professores, mais bem preparados e inteligentes, elevaram o nível de ensino e aplicaram princípios educacionais e modernos, algo que o rival Claretiano, sempre na frente e mais antenado, implantou bem antes.
Dá um certo orgulho nostálgico ter participado de algumas turmas "subversivas" que levou o rock para dentro de uma instituição religiosa rígida e fechada, moralmente deturpada e disseminadora de ideias medievais e estapafúrdias. Eram tempos em que o rock ainda era libertário, progressista e estava encharcado de atitude, mesma época em que o movimento punk ferveu e se tornou importante em São Paulo.
Minha vivência nesta escola, do ponto de vista educacional, me fez abominar totalmente esse tipo de instituição e aprofundou ainda mais minha ojeriza ao catolicismo e a Igreja Católica, reforçando meu ateísmo convicto. Mesmo assim, posso dizer que tive boa infância mesmo tendo passado sete temporadas no Virgo.
Ficam as boas lembranças os lamentos pelo desaparecimento de uma instituição que ligada umbilicalmente a cidade de Guarulhos. Só lamento o tempo que a escola demorou para se modernizar e abandonar parcialmente suas ideologias e estilos medievais.
Não foi por isso que acabou. Só podemos especular se alguma dose de progressismo, se tivesse "contaminado" a instituição mais cedo, teria influenciado e esticado a ida útil. Do ponto de vista do patrimônio histórico, é uma perda sentida para a cidade; do ponto de vista educacional, nem tanto.
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