quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Secos & Molhados e o corajoso desafio pela liberdade há 50 anos

 Janos Kóbor (1943-2021), líder da Omega, a maior banda de rock a história da Hungria, costumava dizer que fazer rock e jazz no Leste Europeu dominado pelo Pacto de Varsóvia (grupo de países dominados pela União Soviética entre 1945 e 1991) era um um ato supremo de rebeldia e de coragem, dada a repressão pesada dos governos comunistas de então. 

No mesmo sentido, vários livro corroboram a tese a respeito dos bravos roqueiros que ousavam desafiar as proibições na Polônia, na então Checoslováquia e, principalmente, na Alemanha Oriental, considerada o maior exemplo de um estado totalitário e policial em tempos recentes.

Mas o que dizer então de uma banda de rock andrógina, ambígua e provocadora em um ditadura militar sul-americana repressiva e assassina, de viés conservador às raias do fascismo?

No mínimo,  banda brasileira Secos & olhados é, no mínimo, tão ou mais corajosas do que os cultuados grupo de rock progressivo do Leste Europeu dos anos 70, ainda que não tenha enfrentado, diretamente, ameaças de prisão como checos, poloneses e húngaros.

Faz 50 anos que o disco de estreia do grupo brasileiro foi lançado em um momento em que a repressão violenta da ditadura dos gorilas militares estava em seu auge. O grupo durou apenas dois anos, fez imenso sucesso e estabeleceu novos padrões para o mercado fonográfico nacional.

Na verdade, Secos & Molhados foi o primeiro fenômeno pop moderno da música brasileira, criando situações "normas" que se tornariam copiados e seguidos por todo artista que queria ser popular.

Em uma recente sessão de conversa com leitores e fãs - por conta do lançamento de sua biografia, escrita pelo jornalista Julio Maria - Ney Matogrosso ficou sem jeito diante de uma pergunta importante: Secos & Molhados foi a banda mais corajosa do Brasil?

O ex-vocalista e mais bem-sucedido músico do grupo tentou sair pela tangente, mas foi firme ao responder: "Não sei, mas o que tenho certeza é de que Secos & olhados foi uma banda muito corajosa e, mais do que isso, revolucionária."

O impacto que Matogrosso e sua banda tiveram na mídia foi o mesmo que Elvis Presley teve em suas primeiras aparições na TV americana em 1956-1957: um apelo sexual e sensual irresistível para o qual a sociedade conservadora-jeca-caipira não estava preparada.

Como assim uma figura andrógina cantando como uma mulher, rebolando e serpenteando em uma dança ritualística em pleno horário nobre de um domingo?

Em depoimento para os 50 anos do programa "Fantástico", da TV Globo, Ney Matogrosso recordou como a TV foi fundamental para o estouro da banda.

"Reproduziram a capa do nosso álbum em um cenário e  e a música 'Sangue Latino' foi exibida algumas vezes. Era uma espécie de clipe bem feito. Poucos imaginavam que venderíamos 10 mil, 20 mil discos. Só que a exposição catapultou as vendas para mais de 1 milhão de LPs. Uma banda com aquele tipo de apelo na TV e vendendo muito era algo muito revolucionário. Havia casos em que adultos tiravam as crianças da ala, que respondiam cantando as músicas na íntegra", disse o cantor, hoje com 81 nos e ainda na ativa.

E o mais interessante é que a ditadura tomava um tapa na cara e o mundo conservador teve de engolir aquela afronta à "família de bem"; como censurar algo que veio do nada e de repente, arrebata corações de crianças e adultos com tamanha paixão?

Não dava para parar a locomotiva desgovernada, mas isso não significa que o sucesso estrondoso passou incólume. Houve xingamentos intensos e ameaças contínuas e frequentes aos músicos e aos seus fãs mais ardorosos. 

A macharada direitista e violenta, que espancava as esposas e namoradas e adorava se vangloriar de ter amantes, todas "submissas', não aguentava ver aqueles "viados" fazerem sucesso, ganharem dinheiro e enlouquecer as mulheres.

Entretanto, o que mais irritava o mundo conservador era a audácia de ser livre - e de estimular as pessoas a buscar a liberdade. Isso sim era corajoso e revolucionário e foi ressaltando por Ney Matogrosso durante o debate de lançamento de sua biografia.

Assim como aquele meme que dizia que "os monstros e canalhas não suportam a poesia", os gorilas da ditadura militar não suportavam a ideia de que houvesse liberdade individual. Odiavam a coragem que suas vidas medíocres e enrustidas tinham medo. 

Ganhavam a guerra militar contra meia dúzia de grupelhos terroristas mal armados e despreparados, mas perdiam a guerra midiática pelos corações e mentes do povo. 

Bastaram três ou quatro rapazes dançando e rebolando para desarticular toda uma estrutura de censura e controle de comportamento e pensamento. Foi só escancarar o sangue latino de artistas corajosos para que o mundo dessa gente "careta" desabasse. Como censurar algo que já estava na boca do povo?

A censura vacilou? Certamente. apostou qu o álbum com aqueles mascarados e maquiados na capa ficaria restrito a um grupelho de universitários moderninhos fumadores de maconha. Nem havia coisas preocupantes no disco, algo que pudesse ofender ou "atentar contra os bons costumes". 

Como imaginar que aqueles hippies supostamente homossexuais se tornariam os rostos mais conhecidos o país nos próximos dois anos?

No blog "pop & Arte", do portal G1, o jornalista Mauro Ferreira conta uma passagem surreal de como a banda teve de encarrar perrengues em ginásios lotados, como o do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro - e de como Ney Matogrosso peitou a polícia, que batia sem dó no púbico para 'colocar ordem no recinto".

 Não era só coragem de se expor e de exaltar a liberdade, mas também de desafiar a polícia e o aparato estatal de segurança da ditadura.

Teatral e incandescentes no palco, no estúdio a banda usava uma base rock para enveredar por blues, MPB e um pouco de samba, com melodias diferentes e em construídas.

"Sangue Latino", um dos imensos sucesso, era uma balada sangrenta e visceral, um blues que poderia cair muito bem na voz passional de Cazuza (1958-1990), que seria namorado de Matogrosso, além de um de seus melhores amigos.

"O Vira", talvez a canção mais emblemática e conhecida do álbum de estreia, abusada das paródias e do sarcasmo, ao mesmo tempo em que provocava diretamente o imaginário social. Como reagiria a "família de bem" ao ver crianças cantando "vira homem, vira lobisomem"?

"Amor", com letra de João Apolinário, jornalista e pai do violonista João Ricardo, era uma improvável ode romântica (só que não, diriam alguns), enquanto que "Primavera nos Dentes", outra do mesmo autor, trazia uma sofisticada mensagem e uma melodia incomum.

O primeiro álbum da banda, intitulado simplesmente de "Secos & Molhados", foi gravado em apenas 15 dias no Estúdio Prova, na capital paulistana, entre 23 de maio e 8 de junho de 1973.

Além do trio principal (Ney, João Ricardo, o fundador, e Gerson Conrad), contou com o baixista Willy Verdaguer, o pianista Emílio Carrera, o guitarrista John Flavin, o flautista Sérgio Rosadas e o baterista Marcelo Frias. É de Marcelo, aliás, a quarta cabeça da capa do disco. A princípio, ele topou fazer parte do grupo, mas, depois, preferiu continuar como músico contratado.

Para completar o repertorio, algumas versões versões musicadas de poesias e poemas de grandes nomes da literatura brasileira. Vinícius de Moraes "contribuiu" com a bela e tocante "Rosa de Hiroshima", outro imenso sucesso da banda e que se tornou eterna. 

Tem ainda uma pérola de Manuel Bandeira ("Rondó do Capitão"), duas de Cassiano Ricardo ("Prece Cósmica" e "As Andorinhas") e de Solano Trindade ("Mulher Barriguda').

O disco está entre os mais importantes e melhores da música brasileira, e lidera estatísticas entre as melhores estreias em álbum do rock brasileiro. Musicalmente é muito importante, mas como mensagem político-social é fundamental.


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