Chegar ao status de lenda do rock ao ultrapassar os 70 anos de idade confere uma série de vantagens aos artistas. A mais preciosa, certamente, é a liberdade de gravar e lançar o que quiser mesmo em tempos de mercado degradado e indústria fonográfica destruída.
O último trabalho de Paul McCartney, todo gravado por ele durante a pandemia de covid-19, sozinho e tocando todos os instrumentos, é um bom exemplo. e o resultado foi ótimo. Pode ter inspirado, ou não, mas dois ídolos foram por um caminho parecido - exceto tocar todos os instrumentos.
Neil Young se juntou novamente à veterana banda Crazy Horse para misturar canções folk de rara beleza e alguns temas recheados de guitarra distorcida; Bruce Springsteen deixou a guitarra de lado e investiu em homenagear grandes astros da soul music e do rhythm and blues, em um álbum bastante inusitado.
Young vem se mantendo ativo aos 77 anos com lançamentos regulares desde 2010 e surpreende por manter o nível alto de seu trabalho. "World Record", recém-lançado, não é um disco comercial. as baladas folk blues soam datadas, mas são de uma delicadeza rara nos tempos de hoje.
É quase todo acústico, exceção feita a duas canções, uma delas a melhor do disco - "Chevrolet" evoca alguma coisa dos tempos áureos dos anos 70, com suas guitarras poderosas e insistentes, com muita distorção e feeling. O cantor e guitarrista canadense está na melhor forma.
"Overhead" e 'This Old Planet (Changing Days" são presentes de uam artista engajado e com mensagem ecológica, mas positiva. Os violões são estudadamente desajeitados para criar um clima folk de interiorzão americano, mas também evocam o melhor da música de raiz country, com direito e gaita desleixada e algum violino aqui e ali.
"Break the Chain" e "The Long Day Before" seguem pelo mesmo caminho, mas combinam guitarras acústicas e semiacústicas de forma equilibrada e suave, gravadas ao vivo no estúdio, com arranjos às vezes crus e ríspidos, bem ao estilo "roots". "Love Earth" reafirma esse clima, misturando a tradição americana e canadense de canções engajadas e lamentos folk.
É um disco diferente, embora não inédito em seu formato. Young revisita um passado distante e muitas tradições, entregando o trabalho muito bom e bastante agradável, embora possa causar estranheza na primeira audição.
Bruce Springsteen, por sua vez, decidiu colocar todo mundo para dançar escolhendo repertório de muito bom gosto. A guitarra fica de lado e o intérprete aflora com delicadeza e muito bom gosto.
São 15 músicas que resgatam o melhor da música negra e do rhythm and blues norte-americano, em um passeio por diversas vertentes e artistas consagrados.
Quem diria que o rústico e ativista Springsteen emprestaria toda uma delicadeza e sutileza ao clássico "Nightshift", dos Commodores, classicaço dos anos 70 e 80? "I Wish it would Rain", dos Temptations, vira um hit de arrasar quarteirão, enquanto que "Only The Strong Survive" indica como revigorar uma canção que já é forte por natureza - desde a versão original de Jerry Butler.
Na maioria das vezes, Springsteen é reverente, mas arrisca a colocar mais vida e mais peso, como no caso de "7 Rooms of Gloom", dos Four Tops, um hino à consagração negra , ou em "The Sun Ain't Gonna Shine Anymore", que teve bons momentos na voz de Frankie Valli.
Não é um simples disco de versões. Trata-se de uma verdadeira homenagem ao cancioneiro americano relembrando hinos que fizeram parte de momentos importantes da história da música e da luta pelos direitos civis.
Springsteen convence quando canta letras fortes como "Someday We'll Be Together", famosa com Diana Ross & The Surpremes, ou quando se desmancha em "Soul Days" e "I Forgot Be Your Lover", sendo acompanhado em ambas por Sam Moore. Com muita inteligência e talento, soube imprimir seu estilo vocal sem descaracterizar os clássicos escolhidos.
Não deixa de ser um projeto arriscado neste tempos, mas, ao mesmo tempo, mostra uma liberdade e ousadia artística que só um nome gigante e estabilizado é capaz de abraçar.
Pela forma como canta, parece um sonho realizado, ainda que comercialmente não represente algo que vá encher qualquer cofre. Que consigamos desfrutar da mesma forma que ele se divertiu.
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