quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Mergulhando na era da ignorância deliberada

 Muito já se falou que o bolsonarismo abriu as portas dos infernos e dos esgotos, permitindo que a ignorância predominasse em nossa sociedade nos últimos quatro anos. No período, era bacana ser burro e ter orgulho disso, reproduzido o modelo (mal)acabado representado pelo nefasto presidente da República.

Mesmo perdendo em 2022, o pleito foi acirrado e deixou claro que metade da população aposta na ignorância, no fascismo, no autoritarismo e contra os direitos humanos.

O legado deixado por essa gente hedionda é o pior possível e, possivelmente, jamais será extirpado de nossa sociedade. As trevas do medievalismo/burrice bolsonarista nos acompanhará até o final dos tempos.

O meio artístico, e o roqueiro em geral, não é nem mais nem menos ignorante em termos de bolsonarismo. Essa corrente empesteou de tal maneira nossa sociedade e as mentes mais ignorantes que criou um bando de zumbis incapazes de pensar e analisar o horror em que estamos metidos.

O problema é que o rock jamais poderia registrar tamanha infestação de ignorância porque costumava ser um meio mais arejado e refratário à ignorância e ideias fascistas. Esse tipo de pensamento era restrito em nosso meio - ou, ao menos, por vergonha, era mais escamoteado.

Com ascensão do bolsonarismo, o rock no Brasil ficou empesteado de burrice e mau-carastismo imenso. Não só perdeu-se a vergonha de manifestar ignorância como o orgulho desse tipo de comportamento cresceu imensamente, tanto entre artistas como no público em geral.

Libertário, contestador, rebelde, humanista e progressista, o rock lentamente foi sendo tomado pelo vírus do conservadorismo em quase todo o mundo, só que mais notadamente nos Estados Unidos e no Brasil. Passou a ser "normal" roqueiro abraçar teses e ideias fascistas, autoritárias e disseminar todo o tipo de preconceito e intolerância. 

O terraplanismo artístico contaminou todos os níveis, do artista consagrado ao tocador de violão de rua, do talento ascendente ao músico de boteco. 

Sem saber o porquê, decidiram odiar a esquerda e suas ideias, como se fossem responsáveis por sua má sorte ou falta de talento - justamente os progressistas, que tanto defendem a redução do desequilíbrio social e remunerações mais justas para quem é mais vulnerável.

É gente com mentalidade tacanha de classe média, que tem medo da pobreza - e, por isso, odeia e despreza o pobre. 

É gente de classe média que só olha para cima e acha que é mais do que é, mais do que ode ser. É a típica classe média que não gosta do que vê no espelho e acha que é mais do que é. Acha que não é classe média, que é mais do que isso. 

É gente que não dá a menor importância à redução da desigualdade social porque aposta em governos desumanos com programas político-econômicos que valorizam uma certa "liberdade individual egoísta e ególatra" que menospreza aspectos fundamentas da dignidade humana e dos direitos humanos. "O que importa é a minha liberdade e meu bolso, e não dou a mínima para a liberdade do meu vizinho."

Há uma completa desfaçatez e falta de caráter nas atuais discussões políticas no Brasil em que respeito ás liberdades individuais param de valer a partir do momento em me desagrada. 

A situação está tão perigosa e esfacelada que qualquer padre ou pastor que trabalhe pela redução da fome ou pela assistência a sem-teto é ameaçado de morte ou agressão por pregar o "comunismo". Li ao menos cinco mensagens deste tipo em redes sociais ou chats ligados ao rock. Quando foi que o rock passou a abrigar gente desumana desse tipo?

Nas recentes discussões a respeito da polêmica envolvendo a banda Semblant, do Paraná, explicitou os dilemas que, em tese, afetam a nossa sociedade - o embate entre civilização e barbárie, entre progresso e atraso, entre autoritarismo e democracia/ liberdade de verdade.

A banda de metal paranaense, com anos de carreira e que está em uma trajetória internacional em ascensão, virou notícia recentemente de forma desagradável. 

Sua vocalista, a talentosa Mizuho Lin, postou vídeo nas redes sociais apoiando manifestações políticas ilegais (e criminosas) de bloqueio de estradas contra a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições. Mais ainda: expressou seu apoio a eventuais pedidos de intervenções militares para o restabelecimento de uma ditadura - algo que é crime, de acordo com a Constituição.a

A banda, com certo atraso, se manifestou afirmando que a posição dela não é dos demais integrantes e que ela estava afastada das próximas atividades até que houvesse uma decisão definitiva. 

A Semblant está escalada para abrir as apresentações da banda holandesa Epica no Brasil em novembro e é alvo de várias petições para que seja excluída do evento por conta do vídeo de Mizuho.

Nas várias reações a essa barbaridade - o apoio à intervenção militar vindo de uma artista - o que se percebe é uma completa alienação de parte da população, que pode ser interpretado também como analfabetismo político e indigência intelectual grave. Há uma completa distorção de conceitos como liberdade de expressão, censura e democracia.

Por mais que o público roqueiro seja um microcosmo de nossa sociedade doente, é um exemplo de como a ignorância campeia em meios supostamente bem informados.

Na defesa das barbaridades indefensáveis vomitadas pela cantora de metal, muitos apreciadores de rock questionam o porquê de ela ser questionada e por não ter o direito de "manifestar a sua opinião". 

É gente que confunde a liberdade de expressar com a de delinquir, de disseminar fake news, de mentir e de apoiar atos antidemocráticos que são flagrantemente ilegais. Essa gente faz isso de forma ignorantemente deliberada ou é apenas um sintoma de deformação de caráter?

A premissa inicial já demonstra a total indigência de argumentos, já que é ela teve a oportunidade de se manifestar. Não houve censura, tanto é que o video foi publicado. A repercussão é que suscitou reação violenta de quem combate crimes de opinião, discursos de ódio e antidemocráticos. Ela pode falar o que quiser, tanto é que falou. Só que as consequências estão sendo pesadas.

Quem quer ter a liberdade de "falar o que quiser" tem de aguentar as consequências de eventuais crimes ou ofensas que pratica. O fascismo é intolerável, assim como ataques á democracia, às instituições e às verdadeiras liberdades de expressão/opinião.

Não se pode defender e difundir teses e ideias fascistas, que disseminam preconceito e ódio e causam flagelo a outras pessoas e achar que não haverá reação/repercussão negativa/punição. 

E muita gente que defende o direito de a cantora "externar a sua opinião" desconhece os rudimentos básicos de convivência em sociedade e convenientemente ignora direitos e deveres em um ambiente em que a cidadania deveria ser prioridade.

As noções de cidadania estão tão erodidas que os "defensores da liberdade de delinquir" relevam a possibilidade de haver censura em nossas vidas, como nos pavorosos tempos da ditadura militar.

São os mesmos que não se importam em viver sob uma ditadura militar ou sob m governo democrático - pesquisas revelaram índices expressivos de pessoas que dizem não fazer diferença entre as formas de governo. Outras mostraram que empresários acreditam não ser importante viver sob uma democracia, contanto que não afete os negócios...

É tenebroso e assustador, mas não surpreendente. Essa guinada á direita movida a suprema ignorância toma conta da nossa sociedade desde 2013 e desembocou na burrice característica dos tempos bolsonaros encharcados de terraplanismo, preconceitos de todos os tipos, ódio a tudo e tentativas medievais de impor costumes baseados nos piores e mais nojentos preceitos religiosos.

Portanto, diante desse cenário abominável, não deveria causar horror artista defender censura e políticas de teor fascista - que, em tese, vão se reverter contra ele próprio. Muitos desses otários acham que ficarão incólumes apenas e tão somente votaram e apoiaram os fascistas de plantão.

A completa ignorância de conceitos básicos de política e convivência básica em sociedade expõe um quadro de total indigência no meio roqueiro, e que pode ser estendido para o resto da sociedade. 

Não dá para falar em conciliação e união enquanto a ignorância deliberada nortear o comportamento de parte expressiva da sociedade que usa a intolerância como regra de convivência e apela para sentimentos e comportamentos antidemocráticos. 

A polêmica com a banda Semblant apenas explicitou o tamanho do problema a ser enfrentando e - e o quanto a ignorância orgulhosa e deliberada domina o ambiente do rock nacional.

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