terça-feira, 10 de outubro de 2023
Orphaned Land e Khalas: como o rock agiu para amenizar as tensões entre árabes e israelenses
Kobi Farhi tem uma urgência premente. Não consegue ficar parado, é intenso nas palavras e no dia a dia, mas está longe de ser estressado mesmo vivendo em uma região do mundo onde a guerra é a palavra de ordem e o ódio é componente indissociável da sobrevivência.
Entretanto, sua paixão pela vida, pela música e pela cultura se tornaram uma das poucas esperanças de que um dia a paz voltará ao Oriente Médio.Hoje aos 40 anos,continua rodando o mundo liderando a sua Orphaned Land, um combo israelense que mistura heavy metal com elementos da música da região onde nasceu e vive parte do tempo, que incluem influências árabes, turcas, gregas e do Leste Europeu - graças à imigração maciça de judeus russos, ucranianos e poloneses para o território do que é hoje Israel.
A trajetória de Farhi e sua banda é emblemática. "Minha existência não pode ser pautada pela guerra, pelo ódio contra alguém que vive do outro lado de um muro que nem deveria existir. Eu e minha família, assim como os meus amigos, não podemos viver dia a dia com a expectativa de que um foguete pode cair em nossas cabeças. Quem vive do lado do muro que não deveria existir não pode andar para sempre nas ruas na iminência de ser varrido por um tanque de guerra ou por uma bomba lançada por um avião de guerra", pondera o vocalista, com um copo de cerveja na mão em meio a amigos, jornalistas e fãs em um boteco bem interessante na região do ABC, na Grande São Paulo, em uma de suas visitas ao Brasil aos atrás.
Farhi é uma prova de que o ativismo social/político/cultural/humanitário não precisa de ideologia ou bandeiras. Precisa é de gente disposta a conversar e se entender, ainda que seus próprios conterrâneos o chamem de traidor por defender a paz e um entendimento duradouro entre palestinos e as demais nações árabes.
A utopia musical e radical do músico israelense não tem nada de irracional. Embora fazendo rock, e em sua vertente mais pesada, Farhi sabe que não tem tanta penetração no mundo pop e entretenimento de seu país, mas, de uma forma inversamente proporcional, é um voz bastante respeitada no meio cultural do Oriente Médio e entre uma parcela de intelectuais de seu país.
Meio constrangido, desdenha de sua eventual prestígio por sua atuação como ativista. "Troco isso pela paz, pela possibilidade de poder assistir a música e peças de teatro feitos por amigos palestinos e árabes. Pela possibilidade de que minha música, de alguma forma, possa ser ouvida em vários locais do Oriente Médio. Não sei como posso contribuir para a paz, mas farei o que puder para contribuir, do jeito que for possível e viável", disse de forma animada durante a visita ao ABC paulista.
Pois ele fez muito, em um período em que Israel e o grupo político Hamas (que doina a Faixa de Gaza desde 2006) travam frequentemente cnfrontos violentos - e que agora virou guerra com a invasão de território israelense por terroristas da facçõ palestina.
Farhi juntou seu Orphaned Land para encarar a estrada e lutar pela paz – e pela música – ao lado de uma banda palestina entre 2014 e 2016. Segundo reportagem da agência Reuters da época, reproduzida no Brasil pelos jornais O Globo e Zero Hora, o Orphaned Land dividiu um ônibus de turnê com os amigos palestinos da surpreendente Khalas em cinco cidades inglesas, parte do giro europeu conjunto.
O Khalas é conhecida como a Orquestra de Rock Árabe e foi formada em 1998. Tem como inspiração as bandas AC/DC e Black Sabbath.
A Orphaned Land traz músicas carregadas mensagens políticas, enquanto o Khalas ("basta" em árabe) "deixa a música se expressar por ela mesma", segundo um dos seus integrantes. "Eu sinto, como palestino, que tenho o direito de escrever músicas sobre cerveja, sobre meninas lançando sutiãs para a gente no palco", diz corajosamente Abed Hathut, o guitarrista da Khalas, na reportagem da Reuters. "O me aborrece é que,quando eu respondo a isso, muitas pessoas dizem que sou israelense. Que se dane isso! Se eu não falo sobre a ocupação, de repente eu sou um israelense?"
As bandas se encontraram em um estúdio de rádio 15 anos atrás e construíram uma sólida amizade, que evoluiu para uma aliança musical contrapondo boicotes artísticos e tentando promover, em pequena escala, o processo de paz que os extremistas ignoram.
Farhi e Hathut afirmam que jamais votaram e ambos reivindicam o direito pela união em nome da arte. "Eu não confio em políticos de qualquer posição", diz Hathut, com 33 anos à época - hoje tem 40. "É um jogo sujo."
Farhi é um pouco mais elaborado, mas bate igualmente forte: "Enquanto líderes levam metade do ano apenas para negociar os termos para se sentar a uma mesa, e não ainda para discutirem os problemas, nós sentimos que estamos acima deles. Israelenses e árabes são irmãos de acordo com a História: ambos são descendentes de Abraão."
Luta inglória
A turnê conjunta pela Europa, mais do que um show de rock, foi um ato político relevante em um momento em que a juventude árabe que vive em Gaza não tinha esperança, e muito menos perspectiva - exatamente como hoje, em que a repressão israelense contra os palstinos é maior.
O Orphaned Land sempre foi uma das poucas vozes que se insurgiram contra a irracionalidade de mais guerras desproporcionais entre israelenses e os confinados palestinos.
Em 2012, a banda de Farhi mostrou que o rock pode não salvar o mundo, mas é uma arma inteligente e poderosa para demolir a hipocrisia e o cinismo da política internacional. Foi o recado que a Orphaned Land deu ao mundo ao receber, de forma surpreendente, uma distinção do governo turco conhecido como Friendship and Peace Award.
A Turquia foi por mais de duas décadas o único país de maioria muçulmana a manter relações diplomáticas normais e totais com Israel. Na verdade, era a única nação do Oriente Médio que não era inimiga do Estado judeu.
De uns anos para cá as relações azedaram, especialmente pela política de extrema-dreita do presidente turco Racep Erdogan, há 20 anos no poder
A situação se deteriorou em 2012 quando um comboio liderado por um navio turco, tripulado por ativistas internacionais de direitos humanos de vários países, tentou furar um bloqueio naval imposto a Gaza pela marinha israelense.
A intenção dos militares era evitar que o navio chegasse à Faixa de Gaza, um dos territórios da Palestina, país que ainda busca reconhecimento internacional para sua independência e que vive sitiado por Israel em suas duas porções – a outra é a Cisjordânia.
Supostamente, o navio de bandeira turca cheio de ativistas pretendia enviar remédios e alimentos a várias comunidades de Gaza. Israel impôs um bloqueio naval justamente para impedir que a embarcação chegasse à costa palestina alegando que era uma medida para evitar o tráfico de armas.
Ignorando as ordens de retornar a Malta, ilha de onde partiu, o navio turco seguiu em frente e acabou abordado por soldados israelenses, que atacaram por helicóptero e lanchas.
O comboio de barcos organizado pela ONG Free Gaza era formado por seis navios transportando mais de 750 pessoas e 10 mil toneladas de ajuda humanitária para Gaza. O ataque deixou dez mortos e 30 feridos, nenhum deles israelense. O governo turco respondeu cortando relações diplomáticas com Israel. Hoje as relações continuam tensas e estremecidas.
Ignorando o agravamento da questão política no Oriente Médio e entre os dois países, a Orphaned Land, para muitos a melhor banda de rock do Oriente Médio ao lado do conterrâneo Melechesh, agendou uma pequena turnê pela Turquia no começo de 2012, tocando em cidades grandes, como Istambul e a capital, Ancara, e em cidades menores do interior.
A boa receptividade surpreendeu, até certo ponto, os integrantes do Orphaned Land, que praticamente lotou todas as apresentações. Tal fato chamou a atenção do governo turco, que decidiu agraciar o grupo com a honraria.
O primeiro-ministro Recep Erdogan, eleito por uma coalização de partidos liderado pelo seu, Partido da Justiça e Desenvolvimento (de orientação islâmica), por meio do assessor especial Husein Tigcu, informou à época que o Orphaned Land era um exemplo de como a cultura pode aproximar povos e ajudar na busca pela paz permanente.
"Desde o princípio lutamos pela paz e pelo respeito entre as pessoas e nações, pela convivência pacífica entre as grandes religiões do mundo, o que nos tornou uma banda bem vista e respeitada, mas fomos surpreendidos pela honraria concedida pelo governo turco. Fomos a Ancara e recebemos uma taça com as bandeiras de Israel e Turquia, além dos símbolos do judaísmo e do Islã, carregados pela pomba da paz", afirmou o vocalista Kobi Farhi em 2015 ao site de sua gravadora, a Roadrunner Records.
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