Débora era uma mulher imponente. Cantava bem e vivia o rock com intensidade desde que ingressou na família Made in Brazil - fazia vocais de apoio na banda e era casada ctragédia?om o líder, o baixista e vocalista Oswaldo Vecchione. Quem a conhecia superficialmente achava que ela curtia a vida, até que um dia ela decidiu que não dava mais e optou pelo suicídio.
A narrativa de como foram os anos de convivência com a depressão de Débora é o ponto mais dramático do documentário ótimo sobre a banda paulistana, a mais antiga em atividade na América do Sul - longos 56 ano.
Vecchione conta detalhes do cotidiano ao lado da mulher e companheira de banda ate o desfecho final, quando ela aproveitou um descuido na vigilância doméstica de marido, enteados e amigos para tirar a própria vida. Não há como não se comover.
O viúvo apenas resvalou em um assunto ainda mais complicado e perverso - o sentimento de culpa e os olhares incriminatórios de amigos e parentes. Será que eu e os outros fizemos tudo o que podíamos para evitar a tragédia, pergunta-se o viúvo todos os dias.
Por isso soa oportunista e o deplorável texto que o cantor Morrissey, ex-The Smiths, publicou nas redes sociais, "culpando" o mundo pela morte da cantora irlandesa Sinéad O'Connor, aos 56 anos, nesta semana. A
causa da morte não foi divulgada. mas as principais desconfianças são de suicídio, já que ela estava em depressão profunda desde que um de seus quatro filhos, de 17 anos, se matou no ano passado.
O texto de Morrissey, na verdade, ataca "todos aqueles que escreveram textos bonitos de condolências e homenagens, mas nunca fizeram nada para ajudar a cantora em seus momentos de depressão e de mergulho em um quase ostracismo".
O cantor inglês investiu contra gravadoras e a "imprensa", sem especificar, por atacá-la e forçar um "afastamento" da via pública, enquanto "sapateavam em cima de uma figura destruída e prostrada".
Ainda que com os costumeiros exageros, Morrissey mais uma vez erra o alvo ao atacar os mesmos de sempre e com o discurso vitimista de sempre.
Sinéad sabia desde o começo que estava adentrando em um campo minado ao abordar em entrevistas e letras os abusos os quais sofreu na infância e adolescência, além de se engajar no combate à pedofilia (principalmente na forte Igreja Católica irlandesa) e lutar a favor da permissão do abordo.
Corajosa, mesmo se mostrando vulnerável, às vezes, expôs a extrema hipocrisia da sociedade irlandesa, e depois a britânica, no tratamento de crimes sexuais contra crianças e foi a principal voz no rock a favo de medidas e atenção a casos de saúde mental - então considerados meros "mimimis" no anos 90.
O tempo mostrou que ela tinha razão - Chris Cornell (Soundgarden), Mike Howe (Metal Church), o ator Robin Williams e muitos outros sucumbiram á depressão profunda, com suas mortes devidamente acompanhadas por acusações infundadas e perversas contra amigos e parentes.
Quando ela rasgou a imagem do papa João Paulo II para afrontar a Igreja Católica e o silêncio aos casos de pedofilia na Irlanda e nos Estados Unidos, Sinéad sabia que estava na mira de todos.
Ao raspar a cabeça anos antes, em protesto contra críticas ao seu visual, desagradou profundamente a sua gravadora e seus empresários, iniciando uam série de embates com o "mercado", perdendo quase sempre.
Um dos poucos amigos que restaram foi Roger Daltrey, vocalista de The Who. Ao comemorar 50 anos de idade, em 1994, ele organizou um concerto solo cheio de convidados onde tocou só músicas compostas por Pete Townshend, seu companheiro de banda.
Entre os convidados, além de Townshend, estava o baixista John Entwistle, outro companheiro de Who, a banda irlandesa de música folk tradicional The Chieftains, Sinéad O'Connor, já sob intensos ataques de todos os lados.
Discreta, ela fez duetos com o aniversariante em "Baba O'Riley", clássico da banda, e "After the Fire", o seu segundo maior sucesso na carreira solo. Foi a única artista convidada a cantar duas músicas no evento.
Os apoios eventuais deram fôlego à carreira dela, mas não muito. Lentamente ela foi ganhando a pecha de excêntrica e de "difícil", o que foi limitando o seu espaço nas TVs e nas rádios. a agenda de shows ficou menos preenchida, o que aumentou o ressentimento e acentuou a gravidade da depressão.
Ainda assim, mesmo quando era procurada, cada vez mais raramente, para entrevistas, fazia defesa apaixonada das políticas públicas de amparo à saúde mental e da necessidade de se tratar essa questão como um dos males do século XXI. Dentro do rock, foi a mais contundente a abordar o assunto, e foi sempre reconhecida por isso.
Era previsível que oportunistas como Morrissey aproveitassem o momento para destilar ressentimento pestilento contra supostos inimigos de sempre.
Que essas doses de veneno, ao menos, sirvam de alerta, mais uma vez, para a grande causa á qual a cantora irlandesa se dedicou até para diminuir a chance dos abutres de se bauquetear com esse tipo de tragédia.
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