domingo, 9 de julho de 2023

Ritchie resgata a magia da música pop brasileira sofisticada

Um astro pop inglês que se tornou recordista de vendas no Brasil cantando em português e sendo ovacionado em estádios de futebol lotado. A história era boa demais e merecia ser página inteira de jornal com chamada generosa em primeira página. E a coisa só melhora quando o astro é redescoberto 40 anos depois.

O sorriso e a empolgação de Ritchie ao falar de "Voo de Coração", o LP que destronou Roberto Carlo das paradas em 1983, contagiam e tornam a conversa u, rico debate sobre música e o seu poder transformador em qualquer tempo e em qualquer língua.

O cantor inglês de 71 anos está vibrando ao ser notícia de novo, mas não pela vaidade. O improvável professor de língua inglesa que se tornou o artista mais importante de um incipiente pop brasileiro faz questão de manifestar a paixão pela arte é o que o move ao celebrar um marco cultural nos trópicos.

Na verdade, ele sempre foi artista, mas precisou de uma ajudinha dos amigos para descobrir. E foi bem cedo, antes de completar 20 anos de idade, em Londres, quando conheceu Rita Lee e Sergio Dias, dos Mutantes. 

A afinidade foi tão grande que o convite para visitar o Brasil foi aceito em 1972. Entre algumas idas e vindas, ficou definitivamente, até porque se casou logo com a paulista Leda antes de se ficar no Rio de Janeiro 50 anos atrás. 

A total adaptação a um país louco, extremo e multifacetado, que não é para amadores, fica evidente no português sem sotaque e nas ferinas observações cotidianas - é (o se tornou) um legítimo carioca.

"A minha transformação definitiva em artista foi um passo importante dentro de minha trajetória e isso está evidente em 'Voo do Coração', que tem um conceito moderno e abrangente", disse o cantor em conversa exclusiva com o Combate Rock.

Profundo conhecedor do mundo pop como um todo, ele tentou algumas empreitadas na música durante os anos 70, entre elas a mais conhecida, a banda Vímana, que teve em sua formação Ritchie, Lobão, Lulu Santos e o tecladista suíço Patrick Moraz, ex-Yes e que viveu um tempo no Rio com sua então mulher brasileira.

Bem relacionado e inteligente, tornou-se professor de inglês requisitado, principalmente por amigos e novos amigos músicos do circuito carioca. Já se sentia mais carioca do que britânico a ponto de ousar a compor e perceber a magnitude do que significava a língua portuguesa e o tamanho da música brasileira. 

E foi aí que entra em cena Bernardo Vilhena, o letrista e compositor que ajudou, ao lado de Ritchie, Lobão e outros artistas a formatar o que se convencionou a chamar de pop brasileiro lastreado no rock.

"Eu já tinha algumas ideias musicais e senti que Bernardo era o cara que poderia elevar o que eu tinha em mãos a um nível alto", relembra Ritchie. "O texto dele sempre foi primoroso, com suas figuras de linguagem precisas, consistentes e inteligentes."

Se musicalmente Ritchie usava suas influências de rock progressivo e do então moderno pop inglês para moldar as melodias ricas e bem construídas, liricamente ele se aperfeiçoava com Bernardo a explorar imagens lúdicas e cotidianas, 

Emprestou uma sofisticação inexistente ao mundo pop brasileiro, que até então tinha dificuldade em se comunicar com o jovem que ainda não saíra da adolescência, mas ansiava uma arte que pudesse chamar de sua, mas que não necessariamente confrontasse ou demolisse o que tinha vindo antes e era ouvido pelos mais velhos.

"Voo de Coração" era a evolução natural dos temas escrachados pela Blitz com "Você Não Soube Me Amar", venerado pelos adolescentes por conta da linguagem pop descontraída, de recreio ou praia, recheada do gírias cariocas.

Ele e Lulu Santos foram os responsáveis por formatar o verdadeiro op brasileiro em 1983, escapando das armadilhas fáceis dos temas batidos e dos namoricos insossos do fim da adolescência.

Ainda assim, Ritchie usou a parceria com Vilhena para estar um passo a frente de Lulu. Não hesitou em beber em uma fonte característica do rock inglês desde sempre, a crônica. 

As canções que veio a produzir em "Voo de Coração" e nos três discos subsequentes, até 1987, são verdadeiras crônicas, contando pequenas historietas com sofisticação e elegância , o que o afastava providencialmente do rock que estourou à época. 

Sofisticado e elegante, Ritchie transitou por outro caminho, absorvendo influências e estudando estilos de artistas conterrâneos como Bryan Ferry (Roxy Music), Peter Gabriel (Genesis) e Ray Davies (The Kinks), embora ele encha a boca para citar o principal em seu gosto musical: David Bowie.

"As canções de Bowie servem de exemplo de como fazer o simples ter sofisticação, tanto na letra como na música", diz o cantor. "Creio que 'Voo de Coração' apresenta algumas características semelhantes a alguns trabalhos que admiro no mundo pop, principalmente na questão do texto elaborado e das imagens que as próprias canções projetam."

Características essas que dificilmente são encontradas atualmente no cenário de rock e pop nacionais. "Estamos em outro contexto, é óbvio, mas eu percebo que a poesia mais trabalhada, a preocupação com texto, voltou a estar confinada em áreas como a MPB. Não consigo encontrar aquela sofisticação, digamos assim, que eu observava anos atrás, no auge da produção de um Bernardo Vilhena." 

A contribuição de Ritchie não foi tão intensa ao longo dos anos, mas a sua relevância é tal que ganhou bom espaço na imprensa cultural quando do anúncio de sua turnê para celebrar o 40 anos do álbum "Voo de Coração". Muita gente se surpreendeu ao se "lembrar" dele, enquanto outros não perderam tempo em louvar a sua importância.

Recentemente, foi a atração musical principal do programa "Altas Horas", da TV Globo, onde interpretou alguns seus sucessos, como a surpreendente "Pelo Interfone", um exemplo de crônica inteligente e bem construída. Também foi tema de extensa reportagem de página inteira do jornal inglês "The Guardian", feita pelo jornalista Tom Phillips.

Inglês de nascimento e carioca muito mais carioca do que a maioria dos brasileiros do Rio de Janeiro, Richard Court acrescentou o seu DNA britânico à música nacional de forma bastante específica: sofisticado e elegante, dominando totalmente a língua portuguesa, trouxe características bastante diferentes à música brasileira.

 Os textos de suas músicas têm uma certa eloquência muitas vezes observada na MPB dos anos 70, com boas metáforas e analogias, mas explicitadas de forma tão clara e acessível que conquistou rapidamente o público. São eloquentes e até elegantes, mas longe de um certo intelectualismo estéril que algumas obras brasileiras e estrangeiras apresentaram a partir do final dos anos 70. 

Com inteligência, conseguiu entender a alma do jovem brasileiro de classe média carioca e interpretou sagacidade os anseios dessa juventude. Já tinha mais de dez anos de praia e residência no Rio quando finalmente se lançou como artista solo. 

Dá para falar em genialidade? Dá para falar em extrema competência e um talento espantoso, acima da média, e "Voo de Coração" é a sua expressão máxima.


Lançado em junho de 1983, o disco trouxe pelo menos meia dúzia de hits de rádio, como o hit eterno, “Menina Veneno”, e outros sucessos como “Pelo interfone”, “A vida tem dessas coisas”, “Voo de Coração” e “Casanova”.

“Voo de Coração” foi o LP mais vendido do Brasil naquele ano e permaneceu nas paradas nacionais por tanto tempo que, no fim do ano seguinte, ainda disputava a liderança com Roberto Carlos e “Thriller”, de Michael Jackson.

Nos shows que Ritchie está fazendo pelo Brasil para comemorar os 40 anos de "Voo de Coração", tem a companhia de uma excelente banda, formada por músicos experientes como Hugo Hori (sax e flautas), Eron Guarnieri (teclados), Luis Capano (bateria), Renato Galozzi (guitarrista) e Igor Pimenta (contrabaixo).

Muitos o consideram um estilista, embora ele mesmo prefira o rótulo, se é que isso é inevitável, de artista pop em toda a sua definição. "Estou cantando músicas lançadas há 40 anos e que ainda estão na cabeça das pessoas e que têm repercussão impressionante entre um público jovem que tem menos da metade da idade das próprias canções. Posso dizer que são atemporais, um adjetivo perseguido por todo artista. Eu me orgulho disso."

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