segunda-feira, 7 de junho de 2021

André Matos: um ícone do metal e um grande cronista do nosso tempo


Marcelo Moreira

O cantor André Matos gostava quando a imprensa o qualificava de um cronista do nosso tempo. Suas letras delicadas e as melodias intensas que imprimia em suas composições realçavam o que os álbuns "denunciavam": um observador atento da realidade ao seu redor e um obstinado artista em busca de respostas, ainda que desse a impressão de viver em um mundo paralelo.

Era um dos raros artistas internacionais brasileiros que podiam andar tranquilamente pelas ruas das metrópoles mundiais, ser abordado e ficar horas discutindo sobre tudo e sobre um nada. Como pode um cantor tímido e reservado ter uma necessidade tão grande de conversar e interagir? Como surgiu essa verdadeira contradição ambulante?

Sua morte deixou um vazio para fãs e apreciadores tinham no cantor um porto seguro dentro de uma vida acelerada e incerta. Muita gente recorria às músicas do maestro paulistano em busca de uma sintonia em tempos de polarização, divisão e de quase nenhum entendimento sobre o que está acontecendo. 

Aliás, André certamente recorreria a um título de livro do historiador inglês Eric Hobsbawn na observação dos dias atuais: tempos interessantes, como fez em 2013 a respeito das manifestações de junho daquele ano em entrevista ao programa Combate Rock.

Astuto, inteligente e bem informado, o artista cuja voz que ficou eternizada no Viper, no Angra e no Shaman era cordial e generoso, mas também ansioso e com pressa para mostrar que ainda havia muito a ser feito. Ele parecia vislumbrar que talvez não teria tanto tempo assim.

Mesmo tímido e reservado, o sorriso fácil cativava amigos e fãs, revelando uma personalidade às vezes afável e atenciosa, sempre disposta a ouvir e absorver informações importantes. 

No entanto, o mesmo sorriso fácil, às vezes, escondia o sangue nos olhos, não disfarçava o perfeccionismo que incomodava os mais afoitos e menos pacientes. Alguma coisa aconteceria, e tudo evoluía para situações no mínimo embaraçosas.

André Matos faria tudo dar certo, ainda que de seu jeito, sempre tendo ao fundo um de seus clássicos, "Make Believe", do Angra, uma ode ao pensamento positivo e, de certa forma, à força de vontade.

Certamente ficaria orgulhoso pelo legado que deixou e pela inspiração que proporcionou a amigos e fãs. Nada mau para um garoto paulistano de classe média que sonha um dia em abraçar o mundo.

E nada mau para o músico que despertou graças à primeira edição do Rock in Rio, em 1985. Já era integrante do Viper, mas foi o festival que reforçou aquilo que ele já sabia: iria fazer rock pesado e de qualidade pelo resto da vida.

"É um sonho participar de um Rock in Rio após tantos anos de batalha e esforço. Mas jamais vou agradecer a Roberto Medina (empresário e organizador do festival) pelo convite. Tive a oportunidade de conversar com ele e agradecê-lo por ter organizado o Rock in Rio I, em 1985, que levou parte expressiva dos melhores músicos deste país a se tornarem músicos ou a cair de cabeça na música", relembrou o cantor em uma de suas várias conversas com este jornalista.

FOTO: CHRISTIAN 'CHIBAS' NASTARI


Para quem gosta de música, o trabalho de Matos é importante porque conecta o rock feito no Brasil à vanguarda do que sempre foi feito principalmente na Europa. Seu prestígio no continente, assim como o o Angra, é tamanho que ainda hoje impressiona.

No entanto, uma outra característica do músico causava assombro aos profissionais de comunicação: o seu profundo e genuíno interesse pela informação e pela atividade jornalística, o que explica o respeito que tinha pela maioria dos profissionais da área.

Ele se interessava pelo ofício, queria saber detalhes do cotidiano de jornalistas para poder entender como funcionava aquele mundo e como poderia melhorar o seu relacionamento com os veículos de comunicação.

Mais ainda: tinha obsessão por entende tal mundo na tentativa de decifrar os mecanismos das análises e resenhas, assim como a elaboração das pautas das entrevistas. Até nisso ele queria ser o melhor, e quase sempre era.

Muita gente não gosta do André Matos temperamental, aquele que marcava posição e que obsessivamente queria manter o controle de sua carreira e das bandas às quais integrou. Perguntava muito, desconfiava sempre e exigia saber de tudo. E isso incomodava os companheiros de banda.

"Onde você encontrou isso?", perguntou certa vez a mim a respeito de um produto do Viper que desconhecia. Era uma edição em CD duplo que trazia os álbuns "Soldiers of Sunrise" e "Theatre of Fate", dos dois álbuns dos anos 80 que apresentaram a banda e cantor ao mundo.

Eu tinha comprado o CD no início dos anos 2000 em uma improvável loja de CDs em um pequeno shopping da cidade Fernandópolis, a 560 quilômetros de São Paulo (até hoje eu tenho esse CD, embora não saiba ao certo onde esteja...).

Ele não sabia a respeito e ficou visivelmente incomodado quando eu perguntei sobre esse lançamento. Sarcástico, respondeu de forma enfática: "Não faço ideia do que seja esse CD, mas fico feliz que o interior de São Paulo esteja desfrutando da minha música, e de uma forma diferente, antes de mim."

Reação parecida ele teve quando soube que uma coletânea japonesa do Angra, depois lançada na Europa, estava sendo comercializada - era um CD duplo, um com músicas da era de André na banda, outro com canções cantadas por seu substituto, Edu Falaschi, que também reclamou bastante a respeito de não ter sido avisado e consultado sobre esse lançamento.

Não fui consultado e nem sabia de tal coisa. É um tremendo desrespeito, já que tem muita coisa em discussão para ser acertada em se tratando desse tipo de lançamento", esbravejou André durante outra entrevista pra o programa Combate Rock. 

Fora do ar, ele mostrou toda a sua contrariedade com o lançamento e imediatamente acionou um advogado, por telefone, e,m busca de informações sobre o CD duplo.

O cantor demorou para recuperar a calma e, tomando café comendo biscoitos amanteigados na copa do oitavo andar da sede do UOL, em São Paulo, resumiu a sua irritação: "São mais de 20 anos de carreira em que nada foi fácil, em que a remuneração dos músicos passa por muitas mudanças, assim como toda a indústria fonográfica. São os direitos autorais que garantem que possamos fazer discos, turnês e nos manter. Eu me sinto desrespeitado quando ocorrem lançamentos e fico sabendo pela imprensa ou mesmo sendo surpreendido em lojas físicas e virtuais vendo o produto na prateleira. Se isso acontece com o Angra, imagine então com outras bandas e artistas com projeção menor?"

Felizmente, nos dois casos, o desconforto desapareceu depois de acerto do músico com os gestores dos catálogos de Viper e Angra. Rafael Bittencourt, guitarrista e fundador do Angra, sempre calmo e sereno, disse ter ficado surpreso com as queixas de Matos e Falaschi sobre a tal coletânea, "Best Reached Horizon". "Até onde eu sei, eles foram contatados não para que houvesse autorização como também discutir direitos autorais. Seja como for, isso não será entrave para resolvermos isso."

Como compositor, nada melhor do que deixar dois bons amigos do maestro André Matos descreverem a honra de o terem como parceiro:

Corciolli, tecladista e compositor brasileiro: "Um dos maiores talentos que eu conheci. Sua musicalidade era uma coisa impressionante, com profunda atenção os detalhes e obsessão pela perfeição. Sua busca pela performance perfeita era incansável e um exemplo para os músicos que o rodeavam."

Sascha Paeth, guitarrista e produtor alemão, integrou com André o projeto Virgo: "Quando trabalhei com o Angra e o conheci eu percebi que era um músico diferente, muito compenetrado e dedicado. Ele gostava de tocar e cantar, mas tinha um prazer imenso em criar. E assim surgiu o Virgo para dar vazão a nossas inquietudes, para saciar nossa hiperatividade. Ele era daqueles caras que tiravam sons e ideias de algum lugar inalcançável. Usava sempre o conhecimento e a sabedoria a nosso favor. Com isso, tornou-se um artista plural e versátil. Queria muito ter feito algo com ele novamente."

 

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