quarta-feira, 16 de junho de 2021

Joe Bonamassa inova até mesmo em um 'simples' disco ao vivo

Marcelo Moreira


 

Nada como ter as melhores condições para arriscar em tempos de pandemia. E nada como ter a certeza de que as coisas vão dar certo mesmo quando tudo desmorona. Joe Bonamassa não costuma perder a viagem.

O guitarrista norte-americano, o maior nome do blues da atualidade, incansável e imparável, tratou de pisar no acelerador quando percebeu que o mundo não veria tão cedo novos shows de rock ou de qualquer coisa por conta da covid-19: trancou-se em estúdio e virou produtor de vez, além de gravar e gravar seu próprio material.

"Royal Tea" é o seu mais recente álbum, uma pequena obra-prima que demandou um projeto bem estudado. Gravado em Abbey Road, em Londres, o mítico estúdio que serviu para que os Beatles registrasse quase todos os seus discos, o álbum é um tributo ao rock e ao blues inglês, ao mesmo tempo em que serviu para que Bonamassa mostrasse toda a sua versatilidade ao criar e tocar canções ao estilo britânico dos anos 60 e 70, algo inusitado mesmo para um anglófilo. O resultado foi espetacular.

Com tudo pronto, o que fazer para promover o disco sem que pudesse estar em um palco com público? Fazer uma grande live remunerada, com parte da renda voltada para um fundo que ajudasse todos os profissionais de infraestrutura de shows dos Estados Unidos, os mais afetados pela paralisação do mundo dos espetáculos. 

E assim nasceu a ideia de "Now Serving: Royal Tea Live at the Ryman", um disco ao vivo registrado em um teatro em Nashville, sem, público, mas assistindo por estimadas 100 mil pessoas pelo undo via internet.

Não foi confortável para o nerd workaholic tocar para ninguém em um teatro vazio. Um problema contornado por uma performance raivosa e intensa, com uma devoção comovente, para não falar na ousadia de mostrar ao público as canções de um álbum que só seria lançado algum tempo depois.

Ignorando as regras básicas de um mundo corporativo musical falecido há anos, Bonamassa e sua maravilhosa banda de apoio não pensou duas vezes e tocou nove das dez músicas de "Royal Tea", além de três outras canções de "New Day Yesterday", álbum de 2000 que foi relançado no ano passado na comemoração de seus 20 anos. 

"Royal Tea" só estaria nas lojas e plataformas de streaming em setembro de 2020, três meses depois das gravações ao vivo no Ryman que agora se transformam em CD e DVD.

Não é exatamente um ato de genialidade fazer um show, ainda que pela internet, só com músicas inéditas, mas é de uma coragem extraordinária. Talvez não o fizesse se fosse um show normal, com plateia presencial sempre ávida por ouvir aqueles hits batidos de sempre. Cadê "Ballad of John Henry"? E "Dust Bowl"? E "Mountain Time"? "Drive"? "Blues of Desperation"?

Joe Bonamassa surpreendeu mais uma vez (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Em vez disso, tocou o disco inteiro que só seria lançado meses depois, e comprovou a força de músicas como "Royal Tea" e "A Conversation With Alice", músicas que tiveram de se adaptadas pra o formato ao vivo e ganharam mais peso e dinâmica.

A balada blues "Why Does It Take So Long to Say Goodbye" também ficou mais pesada e mais dramática, com um solo maior e magnífico e quase três minutos a mais.

"Beyond the Silence" ganhou nova roupagem blues rock capaz de levantar estádios, enquanto que o blues enérgico "I Didn't Think She Would Do It" se multiplica e toma todo o ambiente embalado pela guitarra magistral de Bonamassa.

Para celebrar os 20 anos de "A New Day Yesterday", três versões vitaminadas de alguns clássicos do blues rock. "Cradle Rock", de Rory Gallagher, soa mais moderna e despretensiosa; "Walking in My Shadows", maravilhosa canção do Free, está reverente demais, carecendo de um pouco mais de energia; "A New Day Yesterday", do Jethro Tull, ressurge estupenda e colossal, com seus mais de nove minutos incluindo trechos de "Starship Trooper" e "Wurm", as duas do Yes, um encerramento extraordinário para um disco ao vivo inusitado.

É algo óbvio reconhecer que qualquer show do guitarrista é estupendo, mas desta vez o inusitado e a ousadia acrescentaram doses extras de gana e de vontade. 

Com uma concentração absurda e sem a descontração de sempre, parecia que o músico queria provar alguma coisa para alguém - como se precisasse. Sem público, e com um ambiente controlado, mas completamente amedrontador e frio, Bonamassa conseguiu expandir alguns de seus limites e consagrou ao vivo um repertório até então desconhecido. Ganhou mais uma vez.

Da banda atual que o acompanha, houve o desfalque do excepcional Anton Fig, indisponível para a data do show em Nashville. As baquetas fiocaram a cargo do correto Greg Morrow. Nas demais posições, o timaço: Reese Wynans (teclados), Michael Rhodes (baixo), Rob McNelly (guitarra), Jade MacRae (vocais de apoio), Danielle De Andrea (vocais de apoio) e Jimmy Hall (gaita e vocais de apoio).

Se o palco lhe faz falta, o estúdio não. Além do novo álbum e agora, o de estúdio, Bonamassa enfurnou-se nas cabines e capitaneou os trabalhos de gente como a guitarrista norte-americana Joanna Connor em seu último CD, que é um espetáculo. Ao lado do produtor Josh Smith, repaginou o blues tradicional da veterana musicista, que teve a carreira revitalizada.

Ele e Smith também assumiram os botões dos novos trabalhos dos guitarristas Eric Gales e Joanna Shaw Taylor, esta uma inglesa de mão pesada admiradora do tradicionalismo e do peso dos licks de Joe Bonamassa.

Mostrando que é um músico diferenciado, a maior parte da renda auferida com o concerto online e as vendas do disco serão destinadas à instituição KTBA (Keep the Blues Alive), criada e mantida por Bonamassa para auxiliar músicos e profissionais do setor em dificuldades financeiras.


 

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