Marcelo Moreira
O período de quarentena e isolamento social por conta do coronavírus tornou-se uma bênção para quem pôde fica em casa, trabalhar remotamente e desfrutar de mais tempo livre. Séries na TV, filmes antigos, curtir a família, colocar a leitura em dia e escutar muita, muita música.
Não foram poucos que resolveram escarafunchar as coleções de LPs, CDs e DVDs e expuseram suas preciosidades nas redes sociais. Do rock ao metal, da MPB ao blues, e mesmo do sertanejo, predominaram as "relíquias", a saudade, o saudosismo.
A imensa maioria não se furtou a escutar os sons da infância, da juventude, de momentos legais e de festivais maravilhosos, tudo ao lado de filhos, netos e sobrinhos. E eis que o classic rock, classic blues e classics qualquer reinaram soberanos.
Já faz anos que o avanço do classic rock, assim como o de bandas covers (que fazem versões de clássicos), descaracteriza e até distorce a percepção de que há coisas novas e interessantes surgindo a todo mundo na música.
O conservadorismo inerente ao rock no Brasil e em muitas partes do mundo muitas vezes sufoca boas iniciativas e novos artistas.
Uma consequência disso é que corremos um risco grande de privilegiar o classic rock em detrimento do novo. Corremos o risco de estar ensinando nossos filhos e netos a gostar somente de coisas antigas.
Não houve quem falasse mal de qualquer show de Paul McCartney em São Paulo nos últimos anos. Os elogios são os de sempre, assim como os efusivos adjetivos que ilustram como para muitos foi um dos principais eventos de suas vidas.
Coisa semelhante ocorreu em shows recentes por aqui de The Who, Roger Waters e outros gigantes do rock, como Guns N' Roses e Aerosmith.
Roger Daltrey (dir.) e Pete Townshend, do Who, no palco do São Paulo Trip: garotada ficou impressionada com o vigor e a qualidade do show da banda (FOTO: DIVULGAÇÃO/MERCURY CONCERTS) |
Em todos esses eventos, chamou a atenção a presença de muitos adolescentes e até mesmo crianças – mesmo com as confusões em relação ao limite de idade imposto pela "classificação indicativa".
Eram shows caros, com ingressos custando não menos de R$ 300 ou R$ 400 (a meia entrada ainda assim era salgada), mas é bacana ver que a molecada se interessa por grandes shows de ídolos de sempre…
Só que não, como bem constatado por dois músicos que foram aos quatro shows citados com os filhos adolescentes e amigos destes.
O publicitário Rubens Costa Júnior, dono de estúdio fotográfico e de gravação de jingles comerciais, é baixista em diversas bandas covers de São Paulo e ABC e é fanático por Led Zeppelin e Deep Purple.
Os dois filhos, Caio e Renato, de 13 e 11 anos, herdaram a paixão do pai e são aprendizes de guitarra. Amam as bandas que o pai amam. E mais nada.
"É um fenômeno que não nos ativemos e acho que ninguém se deu conta. A garotada aprendeu a gostar de rock, a fuçar nas discotecas, CDtecas e arquivos digitais, mas com bastante comodismo. Parece que a novidade para eles é só o que tem mais de 40 anos de gravado, mas não se aprofundam muito. Ficam na superfície do classic rock e só", diz surpreso Costa Júnior.
De tempos em tempos ele pergunta aos filhos sobre o que eles têm ouvido de bandas novas ou o que procuram nos serviços de streaming.
As respostas são lacônicas. O mais velho outro dia citou Radiohead, mas sem convicção. Caio e Renato foram expostos a bandas de nu metal, como Korn e Linkin Park, que acabaram desprezadas.
"Um professor de música dos meus filhos me disse que ocorre a mesma coisa com vários alunos de guitarra e baixo. Todos querem tocar Iron Maiden e Guns N' Roses, mas não se interessam por algo como Mastodon e Lamb of God, coisas que já são velhas", diz o publicitário.
Por coincidência, encontrei um músico de prestígio do rock brasileiro numa rua central de São Paulo tempos atrás – que esteve nos shows de The Who e Paul McCartney de 2017.
O nome será preservado porque não obtive a autorização para descrição de nosso diálogo a tempo. A impressão dele é a mesma de Rubens Costa Júnior.
Algumas bandas novas até recebem um bom público de menor idade, mas não o conserva. "Essa molecada perde o interesse muito rápido. Música não tem valor para essa geração. Tudo está muito acessível e fácil, bem descartável."
Ele percebe um genuíno interesse por coisas como Black Sabbath, Led Zeppelin, The Doors e até Beatles, muito por conta das milhares e milhares de bandas cover que infestaram o Brasil, a Argentina e a Europa.
O chamado classic rock sobrevive bastante por conta disso e das emissoras de rádio, especializadas em rock ou não, que resistem a alterar a sua programação engessada e refém do gosto musical limitado de um nicho de ouvintes.
"Dou aulas de violão e teclado para um punhado de adolescentes – só trabalho com gente de até 18 anos de idade – e nenhum deles é capaz de me falar uma banda do ano passado ou deste ano que tenham escutado. Não é que escutaram e não gostaram: não escutaram, não foram atrás e não têm a menor disposição de correr atrás. Os que gostam de metal preferem ficar a tarde inteira escutando os mesmos quatro CDs do Metallica", diz o músico desanimado.
Jimmy Page no auge do Led Zeppelin, na primeira metade dos anos 70: Led Zeppelin ainda é campeão de veneração pelo público jovem do século XXI (FOTO: REPRODUÇÃO) |
Será que estamos ensinando errado nossos filhos? Será que eles vão se limitar a gostar das mesmas bandas que nós? Não se trata de generalizar, mas é um fenômeno que precisa ser melhor observado.
Em uma enquete sem qualquer metodologia científica, consultei amigos roqueiros com filhos ou professores de música – evitei falar com a galera que já atua profissionalmente.
Os resultados são angustiantes: todos manifestaram, em maior ou menor grau, a sensação descrita pelos meus dois amigos no começo da reportagem.
O interesse dos garotos de menos de 16 anos que gostam de música é efêmero, mesmo entre aqueles que tocam ou que estão aprendendo algum instrumento.
Em alguns casos, os professores tentam equilibrar os clássicos com coisas bem bacanas e que são novas. Em outros, os pais ou tios admitem que "instruem" no piloto automático, e reconhecem, ao ver o material de estudo dos filhos que fazem aulas, que os professores são acomodados e preguiçosos, o que, na opinião deles, diante de minha "provocação", só reforça a pouca disposição em buscar o novo. É um fenômeno, digamos assim, que ultrapassa fronteiras.
Em reportagem publicada na revista Rolling Stone Brasil anos atrás, a coisa parece mais "grave" nos Estados Unidos. Ao ser perguntando se os amigos do filho de então 10 anos gostavam de rock, o baterista Taylor Hawkins, dos Foo Fighters, respondeu de forma resignada: "Não. E acho que nem ele mesmo gosta muito. Ouvem coisas como Drake e Lil Yachty."
Hawkins tenta justificar: "Eu entendo. Teria gostado de uma banda com caras de 45 anos, 50 anos de idade? Provavelmente não."
A premissa está errada, ao menos no Brasil. Aqui a molecada até gosta um pouco de rock, mas justamente aquele feito por caras com quase ou mais de 60 anos de idade. Os clássicos ainda são imbatíveis, e as bandas novas estão à deriva, ao menos parte delas.
Preocupante? Depende do ponto de vista. Aqui no Combate Rock pensamos que é uma situação no mínimo complicada, com a perda progressiva de espaço do rock nas casas noturnas, nos bares, nas emissoras de rádio, no show business e até no imaginário da juventude.
Enquanto o rap e até o abominável funk carioca conseguem dialogar de forma mais eficiente e direta com a juventude – tanto da periferia quanto das classes média e média alta das cidades brasileiras -, o rock não só deixou de fazer parte do cotidiano cultural como encontra barreiras quase intransponíveis para prosperar.
A velocidade de surgimento de novas bandas no Brasil é quase inversamente proporcional à progressiva perda de espaço do gênero musical no ambiente cultural brasileiro e entre os jovens – um paradoxo ainda em busca de uma explicação plausível e que faça um pouco de sentido.
Assim como se deve analisar com reservas a informação de que crianças e jovens brasileiros estão cada vez mais torcendo para times de futebol europeus – informação que carece de bases sólidas e pesquisas confiáveis -, também devemos observar com cautela as impressões de que a molecada que ainda ouve rock abandonou as bandas novas.
No entanto, ao contrário do que se passa em relação à torcida por times da Europa, as impressões a respeito da falta de interesse por bandas novas de rock, nacionais ou internacionais, são fortes e já estão esbarrando nos limites para se transformar em "indícios".
Não há um remédio para isso, já que não dá para obrigar a molecada a ouvir coisas que eles não querem e que até esmo desprezam.
Se acertamos em cheio ao fazer que boa parte deles venerassem Led Zeppelin, Deep Purple, Black Sabbath, Iron Maiden, Metallica, Judas Priest e Guns N' Roses, em algum momento faltou algo para que se interessassem por algo fora da bolha.
Paul McCartney em São Paulo (FOTO: DIVULGAÇÃO/MROSSI/T4F) |
Como analogia, temos a situação em que as crianças passaram a adorar ler por conta das obras relativas a Harry Potter ou a série Game of Thrones, cabendo aos pais e professores mostrarem que o mundo da literatura é muito mais do que isso.
No entanto, ao menos no Brasil, muita gente associou o hábito da leitura a tais obras citadas e nunca se interessou em expandir muito o horizonte literário. É algo parecido com o que se observa em parte dos jovens que ainda se interessa por rock.
Onde erramos e estamos errando – se é que estamos errando? Podemos colocar as coisas nestes termos? Talvez o ponto seja outro. Será que estamos prontos para lidar com o aumento progressivo da velocidade das mudanças culturais que estão ocorrendo neste século XXI?
Seria o rap e o rhythm & blues atual o que foi rock, entre os anos 60 e 90, em termos de manifestação cultural predominante e necessária da juventude?
Será que nós, roqueiros sectários e isolacionistas, estamos dispostos a aceitar que outros gêneros musicais se tornaram muito mais impostantes para os jovens, ainda que não a ponto de moldar uma visão de mundo ou embasar conteúdos mais sofisticados?
Será que estamos preparados para encarar o fato de que as guitarras estão e ficarão fora de moda para sempre e que música, hoje, não passa de mero entretenimento que pode ser adquirido a baixíssimo custo ou de graça?
Estamos preparados para admitir que hoje a importância da música na vida das pessoas é cada vez menos a ponto de se tornar mero adereço pontual no cotidiano das pessoas?
Uma coisa é certa: estamos repetindo o comportamento de muitos pais dos anos 70, 80 e 90: nestes anos 2000, continuamos ensinando nossos filhos a gostar das bandas que veneramos (e vibramos quando isso acontece), mas falhamos miseravelmente em mostrar que eles devem também gostar de rock.
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