quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Copa do Mundo: o sequestro da camisa amarela e o ódio birrento à seleção



Em que momento o o amor acabou? A adesão às camisas amarelas por parte dos apoiadores do impeachment da presidente Dilma Rousseff foi apenas a assinatura do divórcio. Efetivamente, quando a seleção brasileira passou a ser mais odiada do que celebrada em seu próprio país? 

A baixa popularidade do selecionado nacional se confunde com o clima de crise econômica eterna e com a desesperança que tomou conta da política em razão dos inúmeros e constantes casos de corrupção - e agora, mais ainda, diante do funéreo e podre governo do nefasto presidente Jair Bolsonaro.

 São inúmeras as manifestações de roqueiros outrora engajados e progressistas que estão de mal com a camisa amarela e com o que chamam de "seleção internacional milionária e sem vínculos com a alma brasileira. Parte disso é apenas reflexo do que pensa parte expressiva da população, que está "de mal" do país desde as manifestações de junho de 2013.

Entre os mais inconformados sempre esteve André Jung, ex-baterista do Ira!, que vociferou contra o futebol nacional e a seleção nas redes sociais várias vezes ao longo dos anos.

"A camisa amarela virou símbolo do pato", afirmou em várias entrevistas, ao se referir ao "pato amarelo da Fiesp", marca da campanha da entidade contra o excesso de impostos e também dos movimentos contra o PT e Dilma Rousseff. Também se referia ao "sequestro" da camisa da seleção pela extrema-direita apoiadora de Bolsonaro.

Não existe mais aquele clima de já ganhou – e faz tempo: pelo menos desde 2010. Coisa esquisita, mas tão esquisita, que houve um empresário do interior do Brasil que chegou a pensar em processar a CBF e a Rede Globo, após a Copa de 2010, por conta do clima ufanista e de vitória certa que teria sido criado. O coitado ficou com um monte de quinquilharia encalhada e queria descontar isso em alguém. 

Faz tempo que o escudo da CBF se tornou alvo de muitas das mazelas nacionais, futebolísticas ou não. O enfraquecimento permanente de nossos campeonatos por conta da saída endinheirada de jogadores e as gravíssimas denúncias de corrupção contra três ex-presidentes da entidade contribuíram para isso.

No entanto, muitas das culpas que atribuem à camisa amarela são infundadas e injustas. O símbolo foi apropriado (sequestrado) pelos manifestantes que foram enganados pelos movimentos pró-impeachment – quanto a isso, não há o que fazer. 

Parte da população ficou irada e contrariada com essa apropriação, e passou a associar a camiseta aos "golpistas" e àqueles que não aceitaram a perda da eleição nas urnas.

Por mais compreensível que seja esse sentimento, é uma das tantas injustiças cometidas neste país onde respeito e honestidade são diariamente vilipendiados, ainda mais em tempos de polarização política radical e odiosa.

É um exercício complicado e difícil, e pode até ser perigoso em alguns casos, mas é necessário ser feito, seja em tempos de Copa do Mundo ou não: a camisa amarela da seleção brasileira é um patrimônio nacional e do do futebol mundial. Precisa ser dissociada do clima do clima político fratricida e bélico.

Por décadas foi o maior símbolo da nação brasileira, ao lado do mágico Pelé. A camisa amarela simbolizou, no passado, um Brasil que que aspirava dar certo, e que em alguns momentos deu certo -n ainda que houvesse a mancha indelével - e oportunista - da ditadura militar por trás de muito do ufanismo e do "sucesso" dentro de campo.

Por mais torta que fosse a utilização dos símbolos, a camisa amarela conspirava a favor de um clima de união, ainda que temporária. Conspirava até mesmo a favo de uma oposição amordaçada e atacada.

Desde que a nação parou para ouvir no rádio, em locais públicos, a semifinal contra a Itália, em 1938, na Copa da França, a relação do torcedor com a "amarelinha" nunca foi mais a mesma. Dia de jogo da seleção era sagrado, era dia importante, mesmo que fosse amistoso. Dia de jogo, mesmo que não valesse nada, era quase um feriado. O país contava as horas para o embate, mesmo que fosse um amistoso.

Dia de jogo da seleção era sagrado, era dia importante. Nos anos 60 e 70 o país parava para ver e ouvir o jogo. São muitos a lembrar de como a seleção massacrou a Inglaterra por 5 a 1 na Taça das Nações, no Maracanã em 1964. Foi um evento.

Ou então na decepção que acometeu a nação quando a seleção sofreu o empate no modorrento 2 a 2 no mesmo Maracanã contra a França, em 1977.

 O tropeço em um simples amistoso durou dias, com críticas pesadas ao time, e a coisa piorou meses depois, antes da Copa da Argentina, quando houve o jogo de retribuição, em Paris, no qual o genial Platini fez o único gol da vitória, de falta. A seleção fazia parte do dia a dia do povo, e ninguém ficava indiferente a um jogo, amistoso ou de Copa do Mundo.

A desilusão com o momento político, com a polarização transformada em ódio, com a corrupção generalizada que atingiu também o futebol e com a qualidade do jogo em si, dentro do campo, aquém do esperado nos estádios do Brasil, jogaram a camisa amarela e a outrora paixão pela seleção na lata do lixo. 

Vilipendiada e sequestrada por grupelhos políticos execráveis e por uma massa de manobra ignara e gigante, a camisa amarela da seleção paga o pato (literalmente) pelos desmandos e pelas patifarias ocorridas em Brasília e na CBF.

Sua importância foi reduzida pela apropriação nojenta de seu legado e de seu simbolismo por grupos avessos à democracia - gente inconformada com a derrota eleitoral em 2014, e apoiando as consequências nefastas advindas com o impeachment de Dilma, em especial o governo incrivelmente ruim e incompetente de Michel Temer. Mal sabíamos que o sucessor seria muito, mas muito pior....

A camisa amarela e a seleção nacional são as que menos têm culpa na vertiginosa decadência política, moral e econômica do país. Deveriam servir de ponto de referência para uma espécie de resgate do discurso/debate civilizado e da convivência pacífica e cordial que um dia quase atingimos nas últimas três décadas.

Bradar contra o clima de copa e xingar o futebol e a seleção, na maioria dos casos, não passa de birra de gente imatura e sem capacidade de compreensão do que significam os símbolos tão importantes do futebol mundial. 

Na maioria dos casos, não passa de mimimi e birra de revoltadinhos de shopping, que certamente vestiu a amarela nos protestos ou ficou constrangedoramente incomodados com as manifestações contra Dilma, contra o PT, contra a corrupção e contra "tudo o que está aí".

Os mesmos que fazem beicinho e birra contra a seleção são os que torcem para clubes de futebol que foram beneficiados com patrocínios esquisitos de empresas de petróleo ou bancos públicos; são os mesmos que torcem para times beneficiados com estádios que caíram no colo com construção movidas a propinas de empreiteiras; são os mesmos que apoiam e briga por times sustentados por empresas "oficiais" de agiotagem. Curioso que nada disso choca os torcedores (ou não) que vilipendiam a camisa amarela.

Hipocrisia generalizada e falta de vergonha pelos casos de corrupção ainda mais graves que surgiram com a deposição de Dilma Rousseff são artigos de sobra em um ambiente tóxico e deteriorado como é o da sociedade brasileira – a mesma que faz questão de ignorar problemas gravíssimos urgentes, como a falta de moradia e as perigosas ocupações de prédios abandonados. 

Para os incapazes de separar as coisas e entender que ainda há paixão dentro dos gramados, só resta lamentar a pobreza de espírito e a falta de respeito por duas instituições que são reverenciadas no mundo inteiro.

A camisa amarela e a seleção brasileira são muito maiores e muito mais importantes do que as hidrofobia política que domina o país. Certamente muitos dos "do contra" repetirão os chamados "terroristas" que lutavam contra a ditadura militar e que abominavam a "paixão" do torcedor pela seleção, o que consideravam uma "grosseira manipulação" da população.

Só que bastou o Brasil empatar o jogo na abertura da Copa de 1970, contra a Checoslováquia, para abandonassem todas as suas convicções e passassem a torcer loucamente por Pelé, Gérson, Rivellino, Tostão e os outros, como ficamos sabendo por meio de relatos dos "terroristas" anos depois. E o Brasil ganhou aquele jogo por 4 a 1. Exemplo de superação e de separação das coisas – mesmo nos anos de chumbo, uma coisa era uma coisa e outra coisa era outra coisa? Por que não?

Esqueça a marra de Neymar, a arrogância de Daniel Alves, a falta de empatia de caras como Philippe Coutinho, Paquetá, Gabriel Jesus e Firmino com a torcida brasileira. Tente deixar para trás a tragédia do Mineirão 7 a 1. 

Tente esquecer que os últimos três presidentes efetivos da CBF estão condenados por crimes de corrupção ou sofrendo investigações pesadas - e um quarto foi afastado por denúncias de assédio moral e sexual contra funcionários da entidade.

Copa do Mundo é um evento diferente, um tempo diferente, um outro mundo. É um período onde é possível ver futebol sem necessariamente ansiar pela destruição do time de coração do garçom do seu bar, ou do gerente do seu banco, ou da médica de seu filho. 

É exagero dizer que pode se transformar em um tempo de reconciliação, mas certamente é um período onde é possível odiar menos e curtir mais.

A camisa amarela poderá até incomodar muitos no começo, mas são grandes as chances de provocar sorrisos e de mudar estigmas ao final do certame. Esqueça a camiseta "oficial" de R$ 499. Resgate a velha camisa de outras copas, amarela ou azul, e torça de forma vigorosa – mesmo que contra, mas com respeito às duas instituições.

Que as pessoas consigam separar a camisa amarela das manifestações recheadas de patifes que levaram ao impeachment; que consigam separar a seleção e seus jogadores da CBF em si, que não entra em campo e que se tornou covil de corruptos. 

A camisa amarela e a seleção brasileira são muito, mas muito maiores do que isso – ouso dizer, indo além: é muito maior do que tudo. 

E, em tempos de Copa do Mundo, sempre é bom relembrar a frase emblemática de Bill Shankly, técnico do Liverpool entre 1959 e 1974: "Futebol não é uma simples questão de vida ou morte. É muito mais do que isso."

Nenhum comentário:

Postar um comentário