Marcelo Moreira
As mulheres no rock assustam. Incomodam os clubinhos machistas porque os colocam seus devidos lugares, no subsolo e nos esgotos de seus preconceitos e de seu chauvinismo.
Desde sempre Janis Joplin nunca passou de uma hippie drogada, suja e gritona, que se esforçava por parecer escrota e por ser multo malcriada. Essa era a visão que os roqueirinhos metidos dos anos 80 tinham dela.
Empoderamento feminino? Uma força que encarava de igual para igual e que exigia respeito? Um ponto de referência para certa parcela das feministas? "Nunca passou de uma branquela feia e que não cantava, gritava", escutei certa vez um vocalista de banda de rock nacional de terceiro escalão, no começo dos anos 90.
A mulher tinha morrido fazia 20 anos e ainda incomodava e, mais ainda, continuava subestimada por parte dos apreciadores de rock e muito incompreendida pela maioria das pessoas.
No cinquentenário de sua morte e com o rock em baixa no século XXI, a postura extravagante e confrontadora de Janis Joplin ainda incomoda. Nem mesmo as meninas se espelha nela, ou em Amy Winehouse, uma versão jopliniana ainda mais bagaceira do século seguinte.
Não dá para usar a palavra "avançada", mas algumas meninas mais confrontadoras, digamos assim, sabem da responsabilidade e do legado que Janis deixou, só que ainda assim há uma certa relutância em abraçar a "causa".
Sem Janis Joplin não teríamos Chrissie Hynde (Pretenders), as bandas Girlschool e Runaways, Patti Smith, Siuoxsie and the Banshees, Doro Pesch (Warlock e carreira solo) e todas as maravilhosas garotas do metal, passando por Cristina Scabbia (Lacuna Coil), Alissa White-Gluz (as duas do Arch Enemy) e chegando até as musas Amy Lee (Evanescence) e Tarja Turunen (ex-Nightwish).
Janis Joplin, em trabalho belo feito pelo guitarrista e artista plástico brasileiro Edú Marron |
Janis emparedou um mundo repleto de machismo, misoginia e desrespeito. Obrigou o mundinho masculino e falar de sua voz e a guardar momentaneamente o vocabulário chulo e repleto de obscenidades destinados sempre às groupies, as fãs de artistas (qualquer artista) sempre dispostas a tudo para chegar perto dos astros do rock, sempre homens e sempre másculos e sempre fortes e sempre quase inalcançáveis.
Janis Joplin chutou todo mundo e venceu, para perder depois miseravelmente. É um dos riscos desse negócio, não é? Demolir convicções e debochar dos poderosos não costuma ser bom negócio.
Janis nunca se importou com isso, mas depois não segurou a onda. Amargurada, solitária e obrigada a mostrar a força de comportamento e caráter que nem sempre tinha, viu-se enredada nas armadilhas do negócio de entretenimento.
O modelo de empoderamento e contestação feminino também precisava de amor e carinho, mas só obteve traição, cobrança e desprezo, além de raiva por ser a ponta de lança de um movimento que visava dar algum lugar de destaque para as mulheres no rock, um estilo musical sem divas como o blues, o jazz e a soul music.
Não só no rock pesado brasileiro, mas no metal internacional, abundam atualmente exemplos de meninas que foram e vão pra cima, obtiveram seus lugares de destaque, mas que ainda mostram reticências ao abraçar o legado da "cantora branca de blues com o gato esganiçado na garganta".
É muito legal ver uma artista como Fernanda Lira (Crypta e ex-Nervosa), baixista e vocalista, falar em uma entrevista sobre a importância do trabalho de Amy Winehouse e de como sua música é grande e atemporal, a ponto de influenciar em todos os sentidos uma cantora de thrash/death metal como ela.
Mesmo que de forma discreta, Fernanda falou de Janis Joplin no programa Combate Rock quatro anos atrás. Considerando seu legado musical inquestionável, abordou assuntos importantes como a presença da mulher no rock e no metal e sobre direitos humanos, direitos civis e ativismo, algo direta ou indiretamente relacionado com Janis e a evolução das meninas dentro da música.
Quem mais teria a coragem e o estofo para encarar esse debate e apostar fichas em Janis Joplin, a "diva branquela, feiosa e hippie suja" que ousou confrontar os homens nos festivais de Woodstock e Monterey e colocar os sentimentos femininos à frente em suas interpretações viscerais?
São 50 anos desde a sua morte por overdose de heroína em um motel californiano e ainda estamos na fase de discutir legados comportamentais e se o feminismo e o empoderamento das mulheres merecem ou não crédito...
Claro, não nos esqueçamos de que vivemos um período triste e sombrio, onde pensamentos bolsonaros e trumpistas predominam (na verdade, obscurecem) em parte expressiva de nossas sociedades e no Ocidente.
Nestes tempos autoritários e protofascistas, com viés religioso asqueroso, feminismo é crime; empoderamento feminino é coisa de comunista, assim como ativismo pelos direitos humanos.
Antirracismo é coisa de esquerda, coisa de "antifas", ou seja, de antifascistas que clamam contra os ataques à democracia e à liberdade de expressão, contra o moralismo criminosamente hipócrita dos evangélicos de seitas abjetas. Liberdade de pensamento e comportamento é coisa de quem "despreza a moral e os bons costumes".
Diante disso, é claro que, 50 anos depois, Janis Joplin continua incomodando seres medievais que querem a volta das mulheres à clausura da cozinha e dos serviços domésticos.
Cinquenta anos depois da morte de Janis, ainda temos a vergonha de perceber que os homens se assustam com mulheres como Janis, como Amy Winehouse e como algumas outras que chutam a porta e emparedam o machismo - homens do tipo que desprezam a breguice das canções de Adele atacando-a por conta de sua obesidade ("Gordele", como já foi escrito em revista pop brasileira).
Biografia de Janis Joplin que está sendo lançada no Brasil pela editora Seoman |
Os supostos avanços neste período tinham de ser suficientes para que estivéssemos falando sobre legado de Janis para as meninas e sua importância comportamental no rock, mas sobretudo por suas interpretações maravilhosas e roucas de clássicos como "Me and Bobby McGee", "Piece of My Heart", "Summertime", "Mercedes-Benz"...
Por outro lado, louvemos que continuemos a falar sobre questões que ainda estão mal resolvidas e que assustam os machistas de plantão que ainda infestam o rock e o metal. O legado está aí e a voz da "branquela do blues" ecoa e preenche inúmeras lacunas.
A "hippie suja" ou a "dama suja do blues" está entre nós, e continuará entre nós, "poluindo" os ambientes e causando desconforto. Continua e continuará empurrando as menina para fora dos casulos e para ocupar as linhas de frente.
A primeira diva do rock nada mais foi do que um poderoso aríete para derrubar portões e muros. De diva não tinha nada.
"Pérola", um de seus apelidos, gostava de chacoalhar e de demolir, para depois se deliciar. A "Pérola" continua cintilante até hoje, intimidando e ameaçando. Cumpriu magistralmente o seu papel.
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