Marcelo Moreira
Discreto, charmoso, um gentleman. Nada mais distante do estereótipo do roqueiro rebelde, drogado e louco por confusão. Um músico da época vitoriana (alusivo ao período de reinado da rainha inglesa Vitória, no século XIX) jogado em um mundo que, aparentemente, não era o seu.
Ele quis deixar isso bem claro naquele dia meio frio e garoento de 1982. Furioso, mas controlado, demorou quase 20 minutos para colocar o terno caro, dar um nó preciso na gravata impecável, banhar-se em um perfume francês e descer para encarar o cantor imbecil que o ofendera.
E então o baterista Charlie Watts, mais elegante do que Winston Churchill (ex-primeiro ministro inglês na II Guerra Mundial), pegou o elevador e bateu um andar no quarto de Mick Jagger. Este abriu e nem viu de onde partiu o golpe forte no meio do nariz. Cambaleou e quase caiu pela janela em dos canais onde ficava o hotel dos Rolling Stones, em Amsterdam, durante aquela turnê europeia.
"Nunca mais ligue para o meu quarto e me chame 'de meu baterista'. Você é que é a porra do meu vocalista. Nunca se esqueça disso", rosnou e saiu ainda mais furioso. Voltou ao seu quarto, saboreou um copo de conhaque caro, despiu-se e foi dormir.
A história é saborosa e consta de vários livros sobre a banda inglesa e também em "Vida", a autobiografia de Keith Richards.
Charlie Watts e a Danish Radio Big Band, da Dinamarca (FOTO: DIVULGAÇÃO) |
Reservado e avesso à fama, Charlie Watts costuma ser um mistério até mesmo para os companheiros de grupo. Contenta-se em ser um stone, mas que não lhe peçam nada mais do que isso.
Por isso é que nem ele e nem ninguém entendem o porquê de ser o membro mais aplaudido no palco, na hora das apresentações, desde 1995 - algo que muita gente garante ter começado no Brasil, naqueles quatro shows fantásticos de janeiro daquele ano.
Charlie Watts completa 80 anos neste 2021. Mais até do que Bill Wyman, o ex-baixista da banda que é cinco anos mais velho, o baterista era mais improvável dos integrantes a aderir ao arriscado e pouco promissor combo de blues e rock'n'roll surgido nos botecos esfumaçados de Londres onde o jazz imperava.
O fleumático e educado Watts detestava rock. Aos 21 anos de idade, parecia ter 40, seja pelo comportamento, seja para cultura musical de que exalava. Era um exímio baterista de jazz, e um requisitado designer industrial da zona sul de Londres. E já era casado quando Jagger, Richards e Brian Jones criaram os Stones.
Como era um dos poucos músicos que entendiam d forma direta o que tinha de ser tocado, também era o baterista mais cultuado na cidade, por isso ninguém entendeu quando ele, de forma relutante, aceitou ser o baterista dos roqueiros dos Rolling Stones no começo de 1963, mesmo sendo mais velho do que os outros garotos.
Pior, não pensou duas vezes em largar o emprego bem remunerado de designer industrial. O que ele viu naqueles caras pulguentos e sórdidos? Por que não ficou tocando com as lendas do jazz inglês Cyrill Davies e Alexis Korner na não menos cultuada banda Blues Incorporated?
Watts já deu algumas versões desencontradas a respeito de sua escolha, mas Andrew Loog-Oldham, ex-empresário da banda e hoje vivendo na Colômbia, insinuou em uma de suas biografias que o motivo teria sido dinheiro, já os Stones eram o mais próximo de uma banda profissional que o baterista jpa integrara.
E então o culto e discreto e educado e sarcástico Charlie Watts decidiu tocar rock mesmo amando o jazz e se contentou em ser o mais preciso percussionista da música pop inglesa, diferenciando-se da exuberância de Ginger Baker (Cream), da versatilidade inovadora de Mitch Mitchell (Jimi Hendrix Experience), da potência demolidora de John Bonham (Led Zeppelin), do virtuosismo indomável de Keith Moon (The Who) e do groove habilidoso de Ian Paice (Deep Purple) e Billy Cobham.
"Sem dúvida Charflie e Bill [Wyman] eram de outro planeta. Pareciam que não se encaixavam naquele modo de vida rock'n'roll cheio de excessos. Faziam suas partes muito bem e rápido e não viam a hora de se mandar. Charlie era perfeito, sabia o que fazer e sempre matava rápido o trabalho. Se não era muito inovador e nem acrescentava algo diferente às canções, por outro lado deixava-as perfeitas", relembrou o produtor Andy Johns no livro "Uma Temporada no Inferno com os Rolling Stones", de Robert Greenfield sobre as sessões de gravação de "Exile on Main Street", entre 1971 e 1972.
Watts certamente jamais imaginou a dimensão que o rock e os Rolling Stones tomariam, a ponto de deixá-lo muitas vezes milionário, mas certamente teve olho clínico para enxergar que algo acontecia com aqueles moleques que insistam, em 1963, para tê-lo como baterista.
Colecionador de cavalos de raça e um dos principais especialista em história do jazz na Inglaterra, o baterista dos Stones é tratado pelos pares como um lorde e uma verdadeira instituição musical no rock.
Mas é no jazz onde se realiza, tanto que é o stone que mais lançou discos solo depois de Bill Wyman. Todos de "jazz clássico", ou seja, a música dos tempos das big bands, seja fazendo versões, seja tocando música autoral dedicada àquele subgênero. E seus trabalhos solo são primorosos, mesmo longe de qualquer originalidade.
Já teve a sua própria big band, que veio tocar no Brasil nos anos 90, de vez em quando reforma o seu sexteto/octeto para curtas temporadas em casas noturnas especializadas em Londres ou arredores.
Charlie Watts chega aos 80 anos do jeito que queria: sossegado, com dinheiro e sem que ninguém o aborreça. E uma raridade: ainda casado com a mesma mulher há quase 60 anos. Decididamente, é um homem totalmentre fora do seu tempo. Ainda bem.
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