Marcelo Moreira
A analogia pode soar patética, mas é uma referência quando analisamos a obra de um artista inquieto e sedento por novidades. "Reborn", o álbum completo de Fabiano Negri, é o retrato de um artista enquanto vivo (que nos perdoem os admiradores de James Joyce, autor de "Retrato do Artista Quando Jovem").
O cantor e multi-instrumentista esteve prestes a encerrar uma carreira de 25 anos em 2019 insatisfeito com o retorno que tinha como artista solo, por mais que tenha lançado obras muito interessantes no período, seja com a banda Rei Lagarto, seja em seu trabalhos como solista.
Os arquivos digitais do músico de Campinas (SP) chegaram à Big Can Productions, um selo/gravadora, que se interessou por suas músicas e propôs que retomasse os trabalhos com mais material inédito e autoral. Surgia então "Reborn", um EP com cinco músicas e primeira parte de um álbum completo que teria o mesmo nome.
"Reborn II", o segundo EP, está sendo lançado neste mês com as músicas da primeira parte remixadas. Ou seja, na verdade é o álbum "Reborn" completo. É um trabalho de fôlego, denso e intenso, mas que exala otimismo e esperança diante de dificuldades imensas que todos nós enfrentamos em tempos de pandemia.
Negri é um rato artista adepto da metalinguagem (não no sentido extremo do termo), onde brinca com a própria poesia e com as melodias no sentido de buscar explicação para a sua existência e, ao mesmo tempo, destrinchar o seu próprio processo de criação.
Não é a primeira vez que ele aborda como tema a existência do artista e o próprio processo de composição, criação e exposição de uma obra musical.
O álbum que pretendia ser o seu epitáfio, "The Foo's Path", de 2019, o melhor de sua ótima carreira, já mostrava suas inquietudes, decepções e batalhas para seguir na carreira artística usando personagens diversos.
Como prosseguir em um mundo compartimentalizado, pulverizado e disperso, onde artistas underground sofrem com o desinteresse e a feroz disputa por migalhas de atenção na era da ultrainformação e velocidade supersônica da própria vida?
"Reborn" aborda as mesmas preocupações e anseios, mas de uma outra perspectiva. O artista renasce, como sugere o título, mas não necessariamente é uma redenção.
Diante da decisão de prosseguir e perseverar, é necessário redescobrir a trilha supostamente correta ou arriscar or novos caminhos que certamente são muito mais perigosos e desconhecidos.
De certa forma, os novos desafios estão intimamente ligados aos anteriores. As dificuldades são as mesmas, assim como os dilemas.
Como superá-los e como evitar que o "gás" acabe e o leve ao mesmo desânimo que quase abreviou a carreira de um dos músicos mais interessantes da cena roqueira brasileira?
Estudioso da música e apreciador do melhor do classic rock, Negri optou por uma sonoridade mais "vintage", especialmente na segunda metade do disco. Tudo é muito simples, mas com arranjos de extremo bom gosto e boas soluções melódicas., algo surpreendente para um trabalho onde o artista compôs tudo, tocou tudo e produziu tudo.
Se a canção "Sad Clown" é o carro-chefe de "Reborn", a profética e pesada "Moth" mostra todas as armas do talentoso músico, explorando bem várias camadas de guitarras e violões e uma boa performance de bateria.
"Naked Blues" é um interlúdio interessante com seu climão setentista, antecipando de forma bacana a dram,ática e intensa "A Hidden Life", que mescla todas as influências de Negri, indo de Deep Purple a David Bowie.
Não é uma obra de fácil assimilação, e certamente Negri não o fez de forma consciente. "Reborn" aposta na reflexão e na capacidade do artista de se comunicar de várias formas com seu público e de estimulá-lo a discutir e pensar naquilo que está sendo executado.
Exímio lapidador de melodias e hábil com as letras em inglês, teceu uma bela peça orientada para a guitarra e pra arranjos mais sofisticados. O resultado é plenamente satisfatório e ganha muitos pontos ao mudar para um foco mais otimista e esperançoso em relação ao trabalho anterior.
Negri é um artista raro dentro do rock nacional pela qualidade da música que cria e pelas reflexões que propõem a respeito do próprio trabalho artístico. A gravadora americana nos fez um favor ao apostar em seu talento.
a
São muitas as reflexões contidas em apenas pouco mais de 40 minutos de som de qualidade. Ele não busca respostas simples, e nem espera encontrá-las, mas sente a necessidade de discutir e debater os limites do trabalho criativo e o espaço que busca para encontrar algum reconhecimento. O quanto de reconhecimento é suficiente? "The Fool's Path" deixou algumas dessas questões em aberto.
"Sad Clown", o primeiro single da segunda parte, talvez seja o melhor resumo do novo álbum. Marionete manipulada conscientemente para mergulhar em seguida na tristeza de uma existência frustrante? Mas o próprio processo de criação não basta para enaltecer o nobre ofício?
A música traz uma interpretação angustiada e dramática de Negri, que toca todos os instrumentos e brilha nos solos de guitarras em seu momento hard rock. É o clímax do conceito, embora o trabalho esteja longe de ser considerado uma ópera-rock. Discutir o processo criativo e seus impactos são a questão em "Reborn II" e em "Reborn" como um todo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário