terça-feira, 1 de dezembro de 2020

'Casa' de Motorhead e Van Halen, ginásio do Ibirapuera corre risco de desaparecer

 Marcelo Moreira

Complexo esportivo do Ibirapuera (FOTO: DIVULGAÇÃO/GOVERNO DE SÃO PAULO)

Era como se cada grande capital brasileira tivesse o seu Madison Square Garden, de Nova York, aquele lugar referência para entretenimento - jogos de basquete, vôlei, handebol, futsal e granes concertos musicais. Maracanãzinho, Gigantinho, Mineirinho, Ibirapuera...

Tudo bem que a acústica era simplesmente péssima. Não se ouvia nada em lugar algum. Os enormes amplificadores e sistemas de PA cuspiam uma maçaroca sonora indistinguível, mas e daí? Foi lá que vimos Van Halen, Motorhead, Venom, The Cult, Metallica (na primeira vez)... 

E nossas vidas nunca maios foram as mesmas graças ao monumental Ginásio do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, pertinho da avenida Paulista, apesar da penosa subida na hora do fim do show...

O Ibira faz parte a história musical e roqueira do Brasil. Em nada comparável ao Madison Square Garden, já que não foi construído para eventos musicais, é o orgulho de quem teve o privilégio de assistir a algumas das mais memoráveis apresentações que a cidade de São Paulo já recebeu. 

Quem diria que o mesmo lugar que recebeu Motorhead e Van Halen também lotou com 15 mil crianças e adolescentes em shows de Xuxa, Angélica e tudo quanto é tipo de dupla sertaneja?

A cidade que perdeu a maravilhosa casa Via Funchal para os prédios de escritórios na Vila Olímpia e que vê o imponente ex-Credicard Hall definhar lá no fundão de Santo Amaro está prestes a dar adeus ao conjunto esportivo encravado no bairro dos Jardins, pertinho do Paraíso e do próprio parque do Ibirapuera.

De forma lamentável e perigosa, o conselho do Condephaat, órgão que vigia e zela pelo patrimônio histórico, vetou o tombamento de todo o complexo do Ibirapuera, que inclui dois ginásios, piscinas e um estádio de atletismo e de futebol.

Diante deste crime contra a cidade, a gestão tucana combinada de governo do Estado e prefeitura tem oi caminho livre para se desfazer do que considera um|"elefante branco custoso" e permitir, no caso extremo, a privatização/venda da área para a construção de torres residenciais de alto padrão ou de mais um shopping - como se a megalópole precisasse de mais um...

Não bastasse o estelionato eleitoral na reeleição de Bruno Covas (PSDB), quando ele e João Doria, o governador tucano, negaram recuo das medidas de contenção da covid-19 com fines eleitoreiros, agora há o sério risco de um grande patrimônio público e de valor histórico e arquitetônico gigantesco, ser reduzido a escombros para dar lugar a um shopping. 

Eddie Van Halen no Ibirapuera em janeiro de 1983 (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

É um dos raros complexos exportivos públicos da cidade e da Grande São Paulo e que permite, em muitos casos, o uso gratuito por parte da população, embora sempre tenha despertado a cobiça do voraz e insensível mercado imobiliário.

Como todos os conselhos do tipo regulatório e fiscalizatório estão tomados por gente que apoia a gestão depredatória e privatista do PSDB em todos os níveis, as perspectivas não são animadoras.

Para quem apenas é saudosista em relação ao ginásio, é bom relembrar que o estádio de atletismo já recebeu jogos do Campeonato Paulista de Futebol Masculino e diversos festivais de música igualmente históricos.

Vamos relembrar shows maravilhosos de Scorpions e Bruce Dickinson no final dos anos 90, este prestes a voltar para o Iron Maiden. E o grande festival punk que apresentou Sex Pistols para uma geração de moleques aspirantes a punks, mas que na verdade foi engolido por uma máquina demolidora que tocou um pouco antes, o visceral Bad Religion...

O mesmo estádio recebeu a segunda passagem dos Rolling Stones pela cidade, em abril de 1998, durante a turnê do álbum "Bridges to Babylon", evento que causou uma discussão absurda e asquerosa sobre a realização de tais eventos em "locais de grande densidade urbana".

Tudo porque os moradores das tais regiões nobres da cidade ficaram "incomodados" com a confusão e a multidão que compareceu ao evento, que teve como luxo a abertura com shows de Bob Dylan.

As reclamações dos endinheirados foram tantas que o prefeito Celso Pitta (PPB, o partido de Paulo Maluf) iniciou um movimento para impor regras restritivas a eventos em áreas nobres da cidade, a começar pelo estádio do Pacaembu, embora o estádio do Morumbi não estivesse sob esse guarda-chuva de restrições.

Foi um dos grandes momentos do entretenimento na capital paulista, coim filas gigantescas tomando as ruas próximas da Assembleia Legislativa, do clube Círculo Militar e do quartel-general do II Exército. 

Curioso que os mesmos "moradores" da região nunca reclamaram dos inconvenientes da casa legislativa e do parque enorme próximo, cheio de eventos culturais e que atraem milhares de pessoas todos os finais de semana.

A notícia da rejeição do tombamento do complexo esportivo cai como uma bomba em um momento em que os shows do Van Halen na cidade são relembrados por conta da morte do guitarrista Eddie Van Halen, aos 65 anos, em outubro passado.

IMAGEM: REPRODUÇÃO/HEADBANGERS.BR

No tórrido janeiro de 1983, o quarteto era a principal banda do rock mundial e causou furor quando de seu anúncio da turnê sul-americana, que passou também por Porto Alegre, Buenos Aires, Montevidéu e Caracas.

Em 2008, a extinta revista Poeira Zine reconstituiu os passos da banda pelo Brasil e a loucura que acometeu os roqueiros paulistanos com a passagem pela cidade. 

Como sempre, as filas davam voltas por todo o complexo, mas, por motivos ainda não esclarecidos, as três noites paulistanas não lotaram completamente, assim como em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. No entanto, o público superou facilmente os 30 mil pagantes na trinca de shows.

De acordo com o relato da Poeira Zine e também das reportagens publicadas no jornal O Estado de S. Paulo, o Van Halen arrasou em apresentações vulcânicas e explosivas, por m,ais que as questões técnicas não tenham sido as melhores. Era difícil reconhecer as músicas além dos refrões e os próprios músicos sofriam com o retorno para saber quem estava tocando o quê.

Situação muito parecida com o que ocorreu seis anos depois nas lendárias primeiras apresentações do Motorhead no país. As dificuldades foram tão grandes no Ginásio do Ibirapuera que um dos shows foi interrompido no comecinho e remarcado para dois dias depois.

Se o Van Halen tinha tocado muito alto, o Motorhead, como um quarteto, ultrapassou qualquer limite de volume, o real motivo pelo estouro dos amplificadores à disposição em São Paulo.

Entre os roqueiros nacionais não existe um que não tenha boas históricas para contar a respeito das peripécias que era tocar quase sem se escutar naquele imenso casulo. 

Das concorridas festas de aniversário de emissoras de rádio FM a shows abarrotados de Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Titãs e outros clássicos, o ginásio do Ibira fez parte de um mundo mágico de música e aventuras.

O período mais glorioso certamente foi o que compreendeu a década de 1980, com os primeiros eventos musicais massivos antes mesmo do fim da ditadura militar, que já desmoronava, mas ainda amedrontava.

IMAGEM: REPRODUÇÃO SITE ROCK SP

Nas multidões que celebravam qualquer coisa, apareciam os primeiros brados por redemocratização e as plateias, a partir de 1984, transformaram as arquibancadas daquele imponente ginásio em amplificadores dos pedidos generalizados por liberdade, em protestos que passaram cada vez mais ignorados. A preocupação era outra, na periferia dos punks e nas universidades dos "comunistas". Não adiantou nada e o regime militar podre esfarelou em 1985.

Conquistada a democracia, era hora de consolidá-la e os shows de rock nacional contribuíram decisivamente para desanuviar um ambiente de incertezas políticas e de profunda crise econômica. 

Foi no Ginásio do Ibirapuera que muita gente jovem descobriu um novo mundo, em que era possível respirar quase sem medo da repressão policial política - mas não dava para escapar da repressão policial comum de sempre, aquela sempre embalada pela "moral e bons costumes, com carteira de trabalho no bolso e discriminação total de pobres e pretos e prostitutas e drogados".

Fi ali, naquele ginásio, que foi possível vibrar com o primeiro título de campeão mundial de futebol de salão, em 1982, com a vitória do Brasil por 1 a 0 sobre o Paraguai. 

E houve vibração com as inúmeras vitórias, naquela década, das seleções masculina e feminina de vôlei, com as do time masculino da Pirelli e com o basquete estrelado do Sírio, do Monte Líbano, do Corinthians, do Tênis Clube de São José dos Campos...

Em tempos sombrios de retrocessos e depredação do patrimônio histórico em vários lugares, a defesa do complexo esportivo do Ibirapuera é só mais uma batalha em favor da cultura. A história riquíssima do complexo não pode ser abandonada e jogada sem resistência nas mãos da especulação imobiliária.

Que os espíritos rebeldes e revolucionários de Lemmy Kilminster e Eddie Van halen nos iluminem e nos guiem na guerra contra obscurantismo e os condomínios estéreis de alto padrão nos Jardins. Devemos pressionar o Condephaat e os novos vereadores desde já para impedir esse crime urbanístico de grandes proporções em São Paulo.

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