Marcelo Moreira
FOTO: DIVULGAÇÃO/BOURBON STREET
Um sopro de esperança e algum tipo de perspectiva. E então, novamente, um mundo diferente e novo se abre quando um artista muito popular, mas desconhecido de uma parcela da população, morre e causa comoção. Foi assim com alguns artistas sertanejos anos atrás, e foi assim com o funkeiro MC Kevin - quem mesmo?
A pergunta provocativa e preconceituosa foi muito ouvida desde domingo, quando se anunciou o acidente (acidente?) com o cantor, que morreu pouco depois no hospital.
Caiu de uma sacada do quinto andar de um hotel no Rio de Janeiro horas depois de se apresentar em uma festa clandestina e proibida. Assassinato? Brincadeira estúpida? Nada disso: foi uma tentativa de fuga de flagrante de adultério...
Para a nossa observação, isso pouco importa. A trajetória do funkeiro desconhecido para a imensa maioria dos roqueiros surpreende justamente porque dá a dimensão do nosso desconhecimento desse mundo à parte, periférico e que não tem, conexão com o rock - não que devesse ter, mas espanta o quão está distante de nossas mentes.
Eu nunca tinha ouvido falar de MC Kevin e da maioria dos funkeiros queno homenagearam nas redes sociais. Não tinha ideia da indústria que há por trás de um cidadão que ainda buscava um lugar entre os maiores do gênero, estes sim milionários.
Vamos descontar as presepadas e trapalhadas (para ser elegante) que envolvem a história do rapaz de 23 anos. É irrelevante para a nossa história.
A repercussão é o que salta aos nossos olhos: o artista era uma força emergente na música nacional, mobilizando um total de pessoas que nenhuma banda de rock sonha em arrebanhar em qualquer circunstância.
Se o rock nacional dos 80 e 90 abusava da ironia e dos temas mais introspectivos, em uma perspectiva de classe média urbana, e o rap procurava, muitas vezes com raiva, denunciar as mazelas sociais, o funk carioca de viés paulista nunca se preocupou muito com questões ideológicas. Procurou olhar de uma forma diferente para a periferia.
As condições sociais e econômicas eram duras e difíceis, sim, mas o povo da periferia também tinha sonhos, também se divertia e tentava, dentro de seu mundo e de suas condições, curtir a vida, mas havia mais do que isso: sempre havia otimismo e esperança.
E a tal ostentação tão criticada pelos críticos encastelados na classe média, para os habitantes da periferia, era um eufemismo para esperança e sonhos.
Quem não queria estar com dinheiro no bolso, com uma vida mais ou menos mansa, rodeado de mulheres bonitas (no caso dos homens) ou sendo admirada aos milhões (no caso das mulheres) depois de uma infância e adolescência duras em bairros pobres ou comunidades esquecidas por deus e pelos políticos?
O funk abrasileirado e odiado pela classe média joga na cara com muito mais propriedade o que rap jogou anos atrás: as aspirações legítimas de uma juventude apartada da sociedade que não dá a mínima para as críticas eivada de viés socialmente preconceituoso.
Os caras e as minas só querem ser felizes e se preocupar cada vez menos de terão ou não dinheiro para comer no dia seguinte. E isso parece ofender a intelligentsia e a burguesia cultural.
MC Kevin, para o bem ou para o mal, representava tudo isso para muita gente na periferia. E tudo isso ficou evidente na repercussão de sua morte. Mais de 2 mil pessoas se reuniram na frente da casa onde ele viveu na zona norte de São Paulo.
A Vila Ede, um bairro de classe média baixa e operária, é uma das localidades onde a ascensão social e a fuga da dura realidade cotidiana são os objetivos de vida de uma juventude que saboreou de forma breve a normalização econômica após o Plano Real, a partir de 1994, e os bons ventos de uma estabilidade continuada nos governos de Lula no início do século XXI.
Em tempos de crise brava e de pandemia de covid-19, o mundo é outro, mas os sonhos, não. Se estamos com dificuldades de vislumbrar alguma nesga de otimismo, o mundo da periferia continua na mesma toada, enxergando oportunidades e ambicionando dias melhores.
E o que o mundo do rock do século XXI ambiciona dentro do seu visível encolhimento, a ponto de flertar com a irrelevância artístico-intelectual?
Desde quando os roqueiros deixaram de falar a língua da juventude urbana, seja dos bairros mais nobres ou das periferias? Por que o rock deixou de representar os sonhos e as esperanças dos jovens brasileiros, cansados de visões introspetivas, niilistas e existenciais?
Por que aderiram à breguice e à indigência intelectual do mundo sertanejo que nada mais consegue propor do que uma dor de corno?
Por que esse mesmo público abandonou o mínimo de sofisticação que algum rock oferecia em favor de uma música extremamente limitada e pobre em todos os sentidos, mas que oferecia algo além de esperança e otimismo ao falar com orgulho de suas próprias origens e de sua vida cotidiana - ainda que envolva sexismo, machismo e todo tipo de preconceito?
A repercussão da morte de MC Kevin demonstra como estamos distantes de certos mundos e de como temas simples e corriqueiros se tornam os preferidos de um público numeroso que aparentemente esteve invisível pra nós.
Quando foi a última vez que o rock nacional ensejou algum tipo de esperança e ou soprou algum tipo de mensagem otimista?
Isso explica porque bandas como Skank, Jota Quest e Charlie Brown Jr foram as últimas do rock a figurarem nas listas de músicas mais ouvidas nas rádios brasileiras - e isso já faz alguns anos.
Não tenhamos a ilusão de que teremos de ouvir mais o intragável funk carioca-paulista-abrasileirado para tentar entender e aprender sobre o que a juventude quer e deseja.
Entretanto, é bom sempre prestar a atenção no quintal do vizinho ou nas hábitos de quem anda de ônibus ou presta algum tipo de serviço nas áreas mais abastadas. O otimismo pode ser um combustível e tanto para o ofício da criação, e a esperança nunca deixou de ser uma força propulsora das mais relevantes durante a trajetória humana.
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