domingo, 16 de maio de 2021

Utopia musical usa o rock para lutar pela paz entre palestinos e israelenses

Marcelo Moreira

O israelense Kobi Farhi tem uma urgência premente. Não consegue ficar parado, é intenso nas palavras e no dia a dia, mas está longe de ser estressado mesmo vivendo em uma região do mundo onde a guerra é a palavra de ordem e o ódio é componente indissociável da sobrevivência. 

Entretanto, sua paixão pela vida, pela música e pela cultura se tornaram uma das poucas esperanças de que um dia a paz voltará ao Oriente Médio.

Aos 45 anos, roda o mundo liderando a sua Orphaned Land, um combo israelense que mistura heavy metal com elementos da música da região onde vive, que incluem influências árabes, turcas, gregas e dos Leste Europeu graças à imigração maciça de judeus russos, ucranianos e poloneses para o território do que é hoje Israel.

A trajetória de Farhi e sua banda é emblemática e muito pertinente de ser resgatada em um momento onde bandas de rock continuam a ser perseguidas em vários países do Oriente Médio, sobretudo nas nações islâmicas, como o Irã.

O rock também sofre nas mãos dos radicais políticos em Israel por conta de críticas, por parte de alguns artistas, à política de expansão de colônias judaicas em Jerusalém e áreas palestinas. Ainda prevalece o pensamento insano de que "artistas são subversivos e de esquerda" - e antissionistas, no caso israelense. 



"Minha existência não pode ser pautada pela guerra, pelo ódio contra alguém que vive do outro lado de um muro que nem deveria existir. Eu e minha família, assim como os meus amigos, não podemos viver dia a dia com a expectativa de que um foguete vá cair em nossas cabeças. Quem vive do lado do muro que não deveria existir não pode andar para sempre nas ruas sempre na iminência de ser varrido por um tanque de guerra ou por uma bomba lançada por um avião de guerra", pondera o vocalista.

Ele e sua banda estiveram no Brasil para shows há cinco anos, e fez a declaração em uma pausa da turnê, com um copo de cerveja na mão em meio a amigos, jornalistas e fãs em um boteco bem interessante na região do ABC, na Grande São Paulo, em uma de suas visitas ao Brasil.

Farhi é uma prova de que o ativismo social/político/cultural/humanitário não precisa de ideologia ou bandeiras. Precisa é de gente disposta a conversar e se entender, mesmo que seus próprios conterrâneos o chamem de traidor por defender a paz e um entendimento duradouro entre palestinos e as demais nações árabes.

A utopia musical e radical do músico israelense não tem nada de irracional. Embora fazendo rock, e em sua vertente mais pesada, Farhi sabe que não tem tanta penetração no mundo pop e entretenimento de seu país, mas, de uma forma inversamente proporcional, é um voz bastante respeitada no meio cultural do Oriente Médio e entre os intelectuais de seu país. 

Meio constrangido, desdenhou, na conversa de cinco anos atrás, seu eventual prestígio por sua atuação como ativista. "Troco isso pela paz, pela possibilidade de poder assistir música e teatro feitos por amigos palestinos e árabes, pela possibilidade de que minha música, de alguma forma, possa ser ouvida em vários locais do Oriente Médio. Não sei como posso contribuir para a paz, mas farei o que puder para contribuir, do jeito que for possível e viável."

Pois ele está fazendo, e muito, em um período em que Israel e o grupo político Hamas travavam mais uma de suas frequentes guerras na Faixa de Gaza, um dos territórios da Palestina. faz sentido hoje, quandoos palestinos resistem a uma tentativa de desapropriação autoritária de prédios palestinos em Jerusalém Oriental.

Farhi juntou seu Orphaned Land para encarar a estrada e lutar pela paz – e pela música – ao lado de uma banda palestina. Segundo uma ótima reportagem da agência Reuters, reproduzida no Brasil pelos jornais O Globo e Zero Hora anos atrás, o Orphaned Land dividiu um ônibus de turnê com os amigos palestinos da surpreendente Khalas em passagem por cinco cidades por cinco cidades inglesas, parte do giro europeu daquele tempo.

O Khalas é conhecida como a Orquestra de Rock Árabe. Foi formada em 1998 e tem como inspiração as bandas AC/DC e Black Sabbath. 

 A Orphaned Land traz músicas carregadas mensagens políticas, enquanto o Khalas ("basta" em árabe) "deixa a música se expressar por ela mesma", segundo um dos seus integrantes. 

Khalas (FOTO: DIVULGAÇÃO)


"Eu sinto, como palestino, que tenho o direito de escrever músicas sobre cerveja, sobre meninas lançando sutiãs para a gente no palco", diz corajosamente Abed Hathut, o guitarrista da Khalas, na reportagem da Reuters. "E me aborrece porque quando eu respondo a isso, muitas pessoas dizem que sou israelense. Que se dane isso! Se eu não falo sobre a ocupação, de repente eu sou um israelense…

As bandas se encontraram em um estúdio de rádio há 15 anos e desde então construiu uma sólida amizade, que evoluiu para uma aliança musical contrapondo boicotes artísticos e promovendo em pequena escala o processo de paz que os extremistas ignoram. 

Farhi e Hathut nunca votaram e ambos reivindicavam o direito pela união em nome da arte. "Eu não confio em políticos de qualquer posição", diz Hathut, de 33 anos. "É um jogo sujo." 

Farhi é um pouco mais elaborado, mas bate igualmente forte: "Enquanto líderes levam metade do ano apenas para negociar os termos para se sentar a uma mesa, e não ainda para discutirem os problemas, nós sentimos que estamos acima deles. Israelenses e árabes irmãos de acordo com a História: ambos são descendentes de Abraão."

Luta inglória 

A turnê conjunta pela Europa em 2015 e 2016, mais do que um show de rock, foi um ato político relevante em um momento em que a juventude árabe que vive em Gaza não tem esperança, e muito menos perspectiva. 

E o Orphaned Land é uma das poucas vozes que se insurgem contra a irracionalidade de mais uma guerra desproporcional entre israelenses e os confinados palestinos, e continua desafiando o senso comum e o apoio maciço da população de Israel nos combates aos palestinos. 

Em 2012, a banda de Farhi mostrou que o rock pode não salvar o mundo, mas é uma arma inteligente e poderosa para demolir a hipocrisia e o cinismo da política internacional. 

Foi o recado que a Orphaned Land deu ao mundo ao receber, de forma surpreendente, uma distinção do governo turco conhecido como Friendship and Peace Award. 

A Turquia, mesmo governada por políticos conservadores que beiram a extrema-direita e que flertam com o autoritarismo há mais de uma década, foi o único país de maioria muçulmana a manter relações diplomáticas normais e totais com Israel neste século. Na verdade, era a única nação do Oriente Médio que não era inimiga do Estado judeu. 

A situação se deteriorou em 2012 quando um comboio liderado por um navio turco, tripulado por ativistas internacionais de direitos humanos de vários países, tentou furar um bloqueio naval um posto pela marinha israelense.

A intenção dos militares era evitar que o navio com ajuda humanitária chegasse à Faixa de Gaza, um dos territórios da Palestina, país que ainda busca reconhecimento internacional para sua independência e que vive sitiado por Israel em suas duas porções – a outra é a Cisjordânia. 

Melechesh (FOTO: DIVULGAÇÃO)


Supostamente, o navio de bandeira turca cheio de ativistas pretendia enviar remédios e alimentos a várias comunidades de Gaza. Israel impôs um bloqueio naval justamente para impedir que a embarcação chegasse à costa palestina, alegando que era uma medida para evitar o tráfico de armas.

Ignorando as ordens de retornar a Malta, ilha de onde partiu, o navio turco seguiu em frente e acabou abordado por soldados israelenses que atacaram por helicóptero e lanchas. 

O comboio de barcos organizado pela ONG Free Gaza era formado por seis navios, transportando mais de 750 pessoas e 10 mil toneladas de ajuda humanitária para a faixa de Gaza. 

O ataque deixou dez mortos e 30 feridos, nenhum deles israelense. O governo turco respondeu cortando relações diplomáticas com Israel, situação que permaneceu por muito tempo.

Deixando de lado o agravamento da questão política no Oriente Médio e entre os dois países, a Orphaned Land, a melhor banda de rock do Oriente Médio ao lado do conterrâneo Melechesh, agendou uma pequena turnê pela Turquia no começo de 2012, tocando em cidades grandes, como Istambul e a capital, Ancara, e em cidades menores do interior. 

A boa receptividade surpreendeu, até certo ponto, os integrantes do Orphaned Land, que praticamente lotaram todas as apresentações. Tal fato chamou a atenção do governo turco, que decidiu agraciar o grupo com a honraria.

O primeiro-ministro e agora presidente Recep Erdogan, no poder desde 2003 e que foi eleito por uma coalização de partidos liderado pelo seu, Partido da Justiça e Desenvolvimento (de orientação islâmica), por meio do assessor especial Husein Tigcu, informou à época que o Orphaned Land era um exemplo de como a cultura pode aproximar povos e ajudar na busca pela paz permanente.

"Desde o princípio lutamos pela paz e pelo respeito entre as pessoas e nações, pela convivência pacífica entre as grandes religiões do mundo, o que nos tornou uma banda bem vista e respeitada, mas fomos surpreendidos pela honraria concedida pelo governo turco. Fomos a Ancara e recebemos uma taça com as bandeiras de Israel e Turquia, além dos símbolos do judaísmo e do Islã, carregados pela pomba da paz", afirmou o vocalista Kobi Farhi em 2015 ao site de sua gravadora, a Roadrunner Records.

É muita pretensão acharmos que o rock, que é pouco ouvido no Oriente Médio, possa ser capaz de influenciar minimamente dois governos orientados para a aguerra de aniquilação - o de Israel, desde 1948, quando o país foi fundado; o da Autoridade Palestina e o do Hamas, que parecem não conseguir sobreviver sem o estado permanente de confronto com os israelenses.

No entanto, o rock dá exemplo de como é possível conviver sem que seja necessário eliminar o vizinho e viver sob o constante medo de um foguete cair em sua cabeça. O novo conflito entre palestinos e israelenses só prova que estamos em tempos de retrocesso avassalador em quase todos os cantos do mundo.

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