sexta-feira, 7 de maio de 2021

Derretendo aos poucos: a dolorosa morte quando se escolhe o lado errado da história

 Marcelo Moreira



O ressurgimento de um certo tipo de fascismo de cunho religioso maniqueísta resgatou no léxico da atualidade uma frase/pensamento bastante perigoso: "estamos no lado certo da história". Que lado? Ao lado de quem? De qual ponto de vista estamos falando?

Quando a discussão política envereda para o lado moral na falta de argumentos esse tipo de ideia perigosa se sobressai em todos os lados e postos do espectro ideológico. 

Esquerdistas adoram vomitar a frase, que foi apropriada mais recentemente por gente da pior espécie, em especial pela quase totalidade dos apoiadores da excrescência que está na presidência do Brasil. Quem decide qual o lado certo da história? Os vencedores?

Se os nazistas tivessem vencido a II Guerra Mundial, para alegria dos fascistas-facínoras do mundo todo, o lado certo estaria invertido. Ou, na verdade, nem haveria lado certo, pois quaisquer outros teriam sido exterminados...

No entanto, nenhum julgamento moral será capaz de reverter uma ideia fixa que se incorporou nos discursos de pessoas decentes, equilibradas e que se informam: o fascismo, o autoritarismo e todo o tipo de regime/governo baseado em ditaduras sempre estiveram e sempre estarão do lado errado da história, por mais que tenham predominado pela maior parte do tempo na longa jornada do ser humano neste planeta.

Para o cidadão ocidental médio razoavelmente educado e bem informado, não restam dúvidas de que a democracia e os respeitos às liberdades em geral são bens valiosíssimos e absolutos, inquestionáveis e que precisam ser defendidos a todo custo, ainda que requeiram ações e medidas fascistas. 

Assim sendo, como enfrentar um debate com pessoas que não só desprezam tis conceitos como urram de prazer quando pregam a eliminação de adversários, que passaram a ser inimigos, e de qualquer um que ouse criticar o líder, o mito, o fuhrer?

Só mesmo quando ultrapassamos os graus mais inclassificáveis de polarização política e extremismo é que nos faz aceitar um conceito perigoso como o do "lado certo da história". É o fim, da linha? O ponto mais baixo de nossa existência?

São inúmeras e cada vez mais virulentas as discussões a respeito do governo federal desastroso e trágico do Brasil, dominado por tamanha incompetência administrativa, em todas as áreas, que chega a ser criminosos moral e eticamente. 

E escandaliza quando vemos artistas, que deveriam ser libertários e amantes da liberdade por definição, abraçar declara e explicitamente o fascismo que não vê a hora de "cancelar" esses "malditos artistas comunistas".

Diante de tamanha indigência intelectual do bolsonarismo e de sua gente nefasta e nojenta, fica fácil identificar qual é o lado certo da história e da vida, por mais que não gostemos da tal frase e de todo os contextos que as cercam.

Apoiar um governo liderado por um ser desprezível que ataca o conhecimento, a ciência, a educação, a arte e que abomina direitos humanos sinaliza bem o tamanho da deformação de caráter da pessoa. 

O que dizer então de um músico que defende tal presidente e tais pensamentos? Justamente uma "ideologia" que , em tese, no extremo não tão extremo assim, vai se voltar contra ele próprio, o artista, que em outras eras era símbolo de rebeldia, atitude, contestação, inteligência?

A mais recente contenda política envolvendo músicos no Brasil envolveu o ressuscitado Pe Lu, guitarrista da desaparecida Restart, banda emo de poucos bons momentos, e Digão, guitarrista e vocalista dos Raimundos, banda há muito tempo longe de seus melhores dias.

Pe Lu, em uma tentativa de chamar a atenção, concedeu uma entrevista, logo replicada em alguns perfis de redes sociais, dizendo-se estarrecido com artistas de rock que não têm pudor de apoiar extremistas de direita e ideologias exclusivistas e que pregam o ódio. E citou Digão como um exemplar desse tipo - o cantor dos Raimundos sempre que pode demonstra seu apoio a Bolsonaro e a ideias da pior direita que existe.

Tirando o fato de que o moço do Restart estava desaparecido e que foi oportunista para "ressuscitar" ao bater no tema extremismo político citando outro músico, está coberto de razão. 

Uma coisa é alguém professar ideias de direita e ter muitas reservas a políticos e partidos de esquerda; outra é apoiar gente asquerosa que defende milícia, ditadura, tortura, perseguição política, depredação de direitos humanos e restrição de liberdades. Quem apoia esse tipo de canalhice também é canalha.

Na resposta mal-educada a Pe Lu, Digão se esquivou da questão política e preferiu investir no ostracismo do antagonista e na suposta diferença de "prestígio" entre as duas bandas, como se isso significasse alguma coisa na discussão. É claro que a coisa descambou para xingamentos, como é de praxe entre os iletrados e indigentes intelectuais bolsonaristas.

A coisa se estendeu e chegou ao ponderado, mas contundente Tico Santa Cruz, vocalista dos Detonautas Roque Clube. É a voz do rock mais ativa contra o o desastre e o perigo do mundo bolsonaro e um dos principais militantes antifascistas do mundo artístico. Está do lado certo da história, ainda que exagere na forma e compre brigas desnecessárias, como é o caso aqui.

Santa Cruz defendeu o guitarrista do Restart e, em outras palavras não elegantes, confirmou o que todos já sabem, que Digão é um simpatizante do atual presidente e da extrema-direita e que está do lado nefasto da contenda.

São discussões intermináveis e que não leva a lugar algum, infelizmente. Como os bolsonaristas têm orgulho da própria ignorância, continuam vomitando as mesmas mentiras, fake news, contos bizarros e toda a sorte de imundícies na defesa do "mito". 

É gente que, em sua imensa maioria, tem deformação de caráter, quando não a completa incapacidade de compreender minimamente o ridículo que passa. É gente que despreza a democracia até o momento em que os parcos direitos que lhe restarem em uma eventual ditadura forem retirados.

Tico e Pe Lu entram em uma polêmica estéril e inútil envolvendo um músico que já foi importante mas que desvia do debate por absoluta incapacidade de encontrar ao menos um argumento para tentar defender o indefensável. Deviam guardar energias para debates mais saudáveis e necessários.

Quanto aos Raimundos, foi um dos últimos sopros de energia e vitalidade do rock nacional ao apostar na rebeldia e na irreverência - e principalmente no politicamente incorreto.

A conversão do vocalista Rodolfo Abrantes ao cristianismo de certa forma fundamentalista - virou evangélico - descarrilou a banda. O vocalista saiu e os Raimundos tentaram continuar como um trio, depois quarteto, tendo Digão nos vocais e na guitarra. A magia se perdeu.

Por coincidência, o naufrágio ocorreu no ápice do afundamento da indústria fonográfica, com o sumiço das gravadoras, do dinheiro e de parte considerável dos fãs. 

O baterista Fred e o baixista Canisso (este voltaria anos depois) e os Raimundos fora tragados pelo tsunami da história, assim como as bandas emo do tipo Restart, Fresno, NX Zero e CPM 22 (por mais que algumas delas ainda vaguem por aí como almas penadas; Raimundos, pelo menos, deixou um legado significativo, ao contrário das outras citadas, em minha opinião).

Sim, Raimundos deixou um legado atraente, mas que corre o risco sério de ficar com manchas duradouras por conta da associação do nome da banda ao bolsonarismo e a outros tipos de extremismo por conta do comportamento e das declarações de Digão. 

Não foram poucas as vezes em que o baixista Canisso se manifestou em entrevistas tentando se distanciar desse panorama, mas parece, por enquanto, que não está sendo o suficiente. 

E assim os Raimundos, de banda libertária e anárquica, quase sem limites, está se tornando, por mais que seja involuntário, em banda associada aos reacionários por conta dos posicionamentos de apenas um de seus integrantes.É desagradável concluirmos, algum dia, que os Raimundos decidiram ancorar do lado errado da história.

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