Marcelo Moreira
O guitarrista e compositor Pete Townshend, da banda The Who, é um artista bastante preocupado com o próprio ato de criar, fazendo de artigos, músicas e livros um trabalho de metalinguística na tentativa de decifrar impactos do processo de criação artístico.
Duas de suas óperas-rock tratam desse assunto, colocando o artista como personagem principal . "Psychoderelict", de 1993, é seu último álbum solo, mostra um roqueiro decadente tentando se livrar das garras de empresários inescrupulosos que o roubam sem piedade.
"Endless Wire", de 2006, gravada por The Who, bem menos inspirado, tem metade de suas músicas dedicadas a uma história de uma banda musical que sofre para ser bem-sucedida, mas atingindo o auge e depois a decadência em uma velocidade enorme.
Na canção "We Got a Hit", o trio que forma a base do conjunto, dois garotos e uma garota, comemoram o fato de que uma música deles, finalmente, alcança algum sucesso. Ao ouvir a música no rádio, pulam de alegria: "Temos um hit, temos hit!", exclamam na sala de estar de um dos pais, mais ou menos como os garotos da banda de um sucesso só do filme "The Wonders", produzido por Tom Hanks.
Já em, 2006, quando a canção do Who foi lançada, como na época do filme citado, era possível perceber as mudanças destroçadoras que atingiram o mercado fonográfico, coisa que impactou até mesmo na maneira de consumir e se relacionar com a música.
Para um jovem da terceira década do século XXI, faz sentido falar hit? Para de sucessos? O que é fazer sucesso? É ser ouvido por 500, 1.000, 5.000 pessoas que curtiram seu perfil ou seu arquivo em determinada rede social? É ter alguns milhões de views ou cliques em um vídeo no YouTube?
É uma discussão fadada a não ter conclusão neste momento, mas que é pertinente porque simboliza o mundo musical em que vivemos.
Faz sentido falar em hit quando percebemos uma completa pulverização de lançamentos e uma perda de foco por conta das facilidades que se têm para fazer música hoje em dia? Em um momento em que artistas outrora grandes comemoram a venda de 20 mil álbuns no formato digital?
Na edição #90 do programa Combate Rock o jornalista Mauricio Gaia, um dos integrantes da equipe, levantou o assunto usando como exemplo a cantora Anitta, no lançamento de um single em inglês voltado para o mercado americano.
Conhecida por ter muito engajamento nas redes sociais, a cantora nunca teve um hit, no verdadeiro sentido da palavra, em seus mais de dez anos de carreira.
Suas músicas são conhecidas na sua bolha, mas não a extrapolam. Não conquistam outros públicos, não expandem o seu horizonte. Será o suficiente Será que realmente ela precisa de um hit?
Provavelmente algumas poucas emissoras de rádio no Brasil ainda se utilizam do expediente de massificar uma musica na tentativa de criar sucessos, especialmente nos segmentos da música sertaneja e do pagode. Ainda insistem em desrespeitar o ouvinte tocando de hora em hora a "música da vez" do candidato da hora a astro- um astro que se desmancha em pouco mais de 15 minutos...
Certamente o conceito mudou, e vai depender do ponto de vista. As bandas Autoramas ou Boogarins, nomes fortes do underground/independente, produzem seu próprio trabalho e conseguem transformar músicas em sucesso dentro de suas bases de fãs, mas é raro que consigam emplacar canções em emissoras de rádio mais populares ou em programas de TV. O que é o sucesso para estas bandas?
Os mais otimistas dirão que é a quantidade grandes de "likes" e interações nas redes sociais, com comentários positivos superando os negativos e os haters.
Os pessimistas provavelmente ainda estarão ancorados em conceitos antigos como a massificação radiofônica e as eventuais vendas estrondosas (????) de arquivos digitais.
Os realistas torcerão para a viralização de um single lançado em plataformas de streaming ou vídeo e, a partir daí, fazer uma campanha bem-sucedida de financiamento coletivo para o próximo álbum ou DVD - quem sabe, um projeto bacana de NFT (non-fungible token), a novíssima modalidade de comercialização de produtos/arte que surge como alternativa de remuneração.
Como parte expressiva da nova geração de jovens nasceu e cresceu sobre a criminosa e falsa premissa de que quase tudo na internet é grátis, mudaram-se os hábitos de consumir e interagir com a arte, sobretudo com a música.
Sua desvalorização como produto de valor agregado é evidente, beirando ao desprezo em relação ao produto em si. É muito raro que alguém jovem ouça uma canção mais do que duas vezes por iniciativa própria, já que a oferta de música na atualidade é esmagadora.
Para completar, o volume gigantesco de informação torna incapaz o surgimento de uma obra perene, que mereça ser absorvida nos detalhes. Da mesma forma que Caetano Veloso já cantou "quem lê tanta notícia" há 40 ou 50 anos, podemos perguntar de forma pertinente: "quem é que ouve tanta música nova e diferente?"
Uma corrente de músicos de rock defende a tese de que a arte em si está morrendo pelo descaso do ouvinte em relação à própria e pela inexistência de mecanismos que reconstruam as possibilidades de alguma remuneração a quem cria.
Jordan Rudess, tecladista do Dream Theater, em entrevista recente, foi bem claro sobre as poucas possibilidades de ganhar dinheiro atualmente com música: "Sobreviver somente disso não dá mais. As bandas e artistas precisar ter outra forma de ganhar dinheiro para sustentar o 'hobby'."
O finlandês Timo Tolkki, ex-guitarrista do Stratovarius, cancelou um curso de longa duração pela internet sobre música, guitarra e mercado musical quando apenas cinco pessoas compraram e se matricularam - ele esperava ao menos 50 em todo mundo.
"A desvalorização do artista e do produto música é uma realidade hoje em dia e compromete o processo de criação e divulgação", escreveu o guitarrista nas redes sociais. "Por menores que sejam, existem custos e profissionais a serem pagos e remunerados. Quase ninguém está disposto a pagar por esse trabalho e o que vemos é gente extraordinária como o gênio André Matos, tendo que cantar covers em bares no final de sua vida."
Se o hit não existe mais e virou algo sem sentido, o que é, hoje, suficiente para um músico? O boca-a-boca virtual poderá satisfazer a necessidade de disseminação de uma canção a ponto de que ela seja amplamente conhecida
Em mundo sem hits, será que algum dia teremos o surgimento de algo grandioso como "Stairway to Heaven", do Led Zeppelin, de "Revolution", do Beatles, ou "Voodoo Child", de Jimi Hendrix?
Será que a grande novidade da última semana, o álbum do Greta Van Fleet, vai durar 15 dias até ser solapado por um som novo do Foo Fighters, que também não durará duas semanas?
É justamente uma novidade e tanto de abril, uma colaboração entre Mick Jagger e Dave Grohl, do Foo Fighters - "Eazy Sleazy", um rockão como há muito os Rolling Stones não fazem - que deveria chacoalhar o mercado. Houve certo furor, é fato, mas apenas no final de semana em que foi lançado. A música, muito boa, já caiu no esquecimento.
Está sendo difícil nos acostumarmos a este novo mundo de atrações rápidas e insípidas, que devem ser digeridas e esquecidas. Esses novos hábitos de consumo condenam a arte a um calabouço onde só há serventia por, no máximo, 48 horas.
Se música e arte estão virando coisa de nicho, de grupelhos e de bolhas, então todos perdem. Esperar que algo bom e de qualidade se dissemine e viralize é apenas um mero desejo do tipo espero ganhar na loteria".
Está bem, não precisamos mais de hits, de sucessos bombando nas rádios, mas será que ouviremos novamente aquela música, boa ou ruim, que gruda como chiclete no cérebro? As emissoras de rádio e TV ainda são capazes de proporcionar "sucesso"?
As plataformas de streaming e vídeo já demonstraram que não. O último hit da semana não está sendo cantado por ninguém nos ônibus e metrôs, muito menos sendo ouvido por milhares nos celulares.
A música pulverizada em múltiplas plataformas e interesses, com uma avalanche de informação, não tem o poder de atrair a atenção por mais do que alguns momentos. Resta aos artistas cultivar o seu nicho e suas bolhas para perscrutar algum tipo de futuro.
Com essa falta de perspectivas de mercado e do surgimento de soluções práticas para uma comercial e industrial, restam sonhos.
Um deles é o NFT (non-fungible token), uma possibilidade de comercialização e remuneração para produtos artísticos.
Já em operação no Brasil, ainda é algo etéreo e de difícil compreensão, mas de cara é possível verificar que não é a saída almejada, ou seja, não contempla os variados interesses em disputa.
Em um mundo com novos hábitos de consumo e novos relacionamentos (mais precários) com as obras de arte, a existência ou exigência por hits parece não fazer mais sentido.
A experiência de se ouvir música se multiplicaram, e não necessariamente melhorou a vida de todos ou ficou melhor com o avanço da tecnologia.
A música, e a arte em geral, perdeu valor agregado e afetivo. Ficou muito fácil acessá-la e obtê-la. A velocidade da vida moderna, com isso, se encarrega de enxotá-la para a gaveta de coisas desimportantes.
Somando a pulverização da informação com a enxurrada de informação e lançamentos, como querer que tenhamos hits e sucessos se não temos a menor disposição para dar a atenção a uma coisa que ainda é "pouco tangível"? Quantas vezes você ouviu a sua música preferida da última semana?
Um aspecto curioso desse estado de coisas é a prevalência de um espírito nostálgico em temos de pandemia, que é revisitar canções antigas em CDs, DVDs, LPs e streaming na busca de um porto seguro para ouvir aquele som que remete a boas lembranças e bons tempos.
As boas memórias se tornam necessárias para que pausemos a vida e possamos curtir um pouco sensações indescritíveis do passado. Até pode satisfazer por um tempo, mas é pouco para uma cultura ocidental que sempre se caracterizou por inovação e busca do inusitado e criativo.
É o classic rock e os classics qualquer coisa que também empurram para baixo as tentativa de se buscar um hit. Até mesmo o mercado de rap/r&b norte-americano está saturado com sua obscena oferta diária de canções e vídeos, em uma industrialização maciça e constante de astros artificiais e plásticos com prazos de vaidade restritos. Aqui também temos a proliferação da predileção por "clássicos".
O ressurgimento de hits e de músicas emblemáticas de eras terá de passar obrigatoriamente por uma volta ao passado, no resgate de velhos hábitos ao saborear uma música legal.
Para isso, a música precisa ser revalorizada - o que pressupõe recuperar sua importância e, de alguma forma, ser remunerada de formas mais efetivas, e não em forma de bitcoins ou coisas etéreas.
De certa, teremos de resgatar o prazer de ouvir música, algo que a velocidade da vida moderna e a avalanche de informações nos tiraram há muito tempo.
Bons tempos em que tínhamos que ficar o dia inteiro ouvindo rádio para esperar tocar aquele lançamento ou ter que ver a MTV no final da tarde para ver em qual posição a música ficou.
ResponderExcluir