sábado, 3 de julho de 2021

O órgão Hammond incandescente de Flavio Naves

 Eugenio Martins Júnior - do blog Mannish Blog

Mais do que a paisagem, os grandes rios fazem parte da vida econômica e cultural das cidades do interior de São Paulo. O de Piracicaba inspirou o Tião Carreiro e Pardinho a compor o tema clássico da “real” música sertaneja brasileira.
 
Os rios Mississippi e Yazoo, nos Estados Unidos, inspiraram muitas canções dos blueseiros de lá. As raízes do blues foram irrigadas por essas duas entidades da natureza.
 
Aqui em São Paulo, o entorno do rio Paraíba do Sul, que compreende as cidades de São José do Campos, Taubaté, Jacareí, Pindamonhangaba, Cunha, Jambeiro também gerou uma cena blueseira. Menos pelo clima bucólico, mais pelo aglomerado econômico gerado por esses municípios, o que possibilitou a criação de festivais e eventos relativos ao blues.

É de lá que vem o tecladista e guitarrista Flávio Naves (Blues Beatles), Marcelo Naves (Tigerman) e os Simi Brothers, Danilo e Nicolas, focos das entrevistas a seguir. Além do guitarrista Lancaster e da cantora Bidu Sous, já entrevistados por esse blog.

Essas três entrevistas foram realizadas no segundo semestre do ano passado, quando o corona vírus já havia mostrado ao mundo sua capacidade de contaminação e sua implacável mortalidade.

Demorei para publicá-las porque, após passar longos meses de um estado quase catatônico com toda essa situação, comecei a trabalhar em alguns editais que resultaram em um festival sobre economia criativa, o Criasom, duas vídeo-aulas sobre produção executiva e o início de um documentário sobre o blues no Brasil. E esse ar deu uma revigorada.

Quero voltar a me dedicar a esse blog e às entrevistas com os blueseiros do Brasil e da gringa. E também contar as histórias que passo na estrada. Espero que essa seja uma retomada real.
 
Voltando ao Vale do Paraíba, entendo que o aparecimento de uma cena cultural se dá por uma coleção de fatores. Por isso achei pertinente perguntar sobre uma suposta cena musical que vem crescendo nos últimos anos na região.
 
E também por isso juntei Flávio Naves, tecladista com trabalho solo e à frente da banda Blues Beatles; Marcelo Naves com sua carreira solo de gaitista e produtor de festivais; e os Simi Brothers, como guitarristas e produtores de festivais sob esse mesmo tema. Também recomendo a leitura das entrevistas com o guitarrista Lancaster e com a cantora Bidu Sous.

Blues Beatles em show na cidade de Santos, em 2018 (FOTO: EUGENIO MARTINS JÚNIOR)



Eugênio Martins Júnior – Como foi a tua infância musical?

Flávio Naves –
Meus irmãos mais velhos já eram músicos, um toca bateria e guitarra e outro toca baixo. Então já tinha essa presença de músico em casa, já tinha contato com os ensaios e tudo mais.

EM – E o blues, quando apareceu na tua vida?

FN –
Foi pelos meus irmãos, mas principalmente pelo Lancaster, que é meu primo. Ele começou a escutar e tocar blues e apresentou para os meus irmãos.


EM – Você toca um instrumento fascinante que é o Hammond B3. Gostaria que falasse quando e como escolheu esse caminho?

FN –
Escolhi o Hammond quando vi o Deacon Jones pela primeira vez. Ele estava tocando com o Lancaster no Revolution Café, em Jacareí. Eu devia ter uns onze anos de idade e naquele dia ele debulhou o instrumento. Foi um dos melhores shows que eu já vi. Ele tocou com o banco, com o chapéu e aquilo ali me impactou de uma maneira que decidi que queria fazer aquilo. Não comecei no órgão e nem no piano, comecei a tocar Hammond de cara. Tinha uma guitarra, mas o lance profissional começou com o Hammond.

EM – Você gravou um CD com o Deacon Jones quando ele veio ao Brasil. Como surgiu essa ideia e como foram essas gravações? Foram ao vivo?

FN –
A ideia surgiu ligada a resposta anterior. O Deacon Jones foi minha inspiração inicial. Sempre o tive como ídolo e mentor. Então propuz a gravação e ele aceitou. Não são muitos os jovens que escolhem o Hammond e ele também gostava de mim. Sabia que eu havia começado no Hammond por causa dele. Acho que ele me tinha como um pupilo e queria dar essa sequência. Tanto que o nome do CD é Legacy of the Hammond B3.

EM – Você é um dos caras mais antigos da cena do Vale do Paraíba. Gostaria que falasse sobre isso. Tem aparecido bastante músicos deicados ao blues por lá.

FN -
O pioneiro aqui na região é o Lancaster e na sequência vieram eu e o Marcelo Naves, que é gaitista. Daí em diante apareceram novos talentos. Esse aumento do blues no vale deve ser por causa desse movimento que fazemos em trazer o blues pra cá. Eu só vi o Deacon Jones porque o Lancaster o trouxe ao Revolution. Mas a gente tem o costume, tanto eu quanto o Marcelo, de trazer os artistas de fora. Isso faz crescer a cultura do blues na região fazendo com que as pessoas tenham o mesmo despertar que tive com o Deacon. Muitos dos novos artistas que estão aparecendo viram a gente ou algum gringo e se inspirou com isso. Vejo o vale como um celeiro de blues. O pessoal é bem dedicado e isso só tende a crescer.

EM – Você acostuma acompanhar blueseiros gringos aqui no Brasil. Gostaria que contasse como é o processo de receber as músicas e produção.

FN –
É legal esse intercâmbio, porque é um aprendizado. Com relação a repertório e vivência de blues. Muitos deles, sendo de Chicago ou outras partes dos EUA, vivem o blues intensamente. Nasceram e vivem até hoje dentro do blues. Isso a gente consegue perceber no palco. O aprendizado é grande a cada turnê. Tive a honra de gravar e tocar em turnê com o Lucky Peterson no ano passado. Pra mim, um dos maiores artistas de blues por tocar Hammond e guitarra. Sempre gostei de tocar guitarra também. E outros, o filho do Muddy Waters, o Mud Morganfield. Tive alguns momentos no palco que parecia ter sido transportado para uma outra era. Ele traz aquela herança do pai dele. A Tia Carrol, a Demetria Taylor, Terrie Odabi, Guy King são pessoas maravilhosas. Além da experiência de palco, criei uma relação de amizade que faz diferença na minha vida.

EM – E desses, quais foram os momentos mais legais desse trampo. Quer dizer, tocar com os caras do blues internacional, viajar pelo Brasil.

FN –
Um dos momentos mais legais foi com o Lucky no Festival de Rio das Ostras no palco Iriry. A atmosfera me lembrou um dos shows dele que sempre assisto em vídeo. Parecia que eu ficaria na história daquelas pessoas que estavam assistindo. Outro momento legal foi com a Terrie Odabi no programa Altas Horas, quando ela fez aquela galera que nunca tinha ouvido o blues levantar, cantar e bater palmas, e o Serginho extasiado. Simplesmente com a pegada blueseira dela. Então, quando a gente leva o verdadeiro blues pra galera que não conhece. É muito gratificante.

EM – Blues Beatles, como o nome diz, é uma banda que faz arranjos blueseiros para as músicas dos Beatles e também para clássicos do blues. Como funciona isso dentro da banda. Só tem fera lá.

FN –
A Blues Beatles foi criada nos ensaios de uma banda que nós tínhamos, a Today. Fazíamos jam sessions nos intervalos, tocavamos blues, rock e a formação do Viana é Beatles, Oasis. Eu e o restante da banda viemos do blues. Um dia estávamos fazendo um blues e ele cantou Ticket To Ride e nasceu a Blues Beatles. Fazemos assim até hoje nas nossas criações. No álbum mais recente, o "Let It Blues", lançado em fevereiro, chamamos o Fred Sunwalk lá de Ribeirão Preto e o Denilson Martins. O resto da banda mora aqui em São José dos Campos. Nós entramos em estúdio e tocamos descontraidamente e daí nascem as versões. Tocamos uma levada de blues e o Viana lembra de um tema que se encaixa ali. Elas amadurecem quando tocamos nos shows e depois entram no disco.

EM – Vocês estavam com muitas datas fechadas nos EUA e Europa, mas foram pegos em cheio pela pandemia de Covid-19. Como têm se virado e como vê o futuro da música?

FN –
Tínhamos três turnês marcadas nos Estados Unidos, estávamos lá inclusive, e mais duas na Europa para agosto e novembro. Foi muito complicado, quando a pandemia chegou nos Estados Unidos nós estávamos no estado de Nova York, onde começamos ver as notícias na televisão e os países vizinhos ao Brasil fechando as fronteiras. Ficamos com medo de não poder voltar pra casa e não teríamos nem o que fazer lá. Os shows sendo cancelados até que nós decidimos voltar ao Brasil antes que a situação piorasse. Novas datas foram agendadas para os shows. No Brasil, como você sabe, todos os shows também foram cancelados. Desde então o que temos fazendo são as lives, temos um público que tem sido solidário com a banda. E também lives para festivais e marcas. Também fomos convidados para tocar em drive in, mas ainda não aconteceu. Sabemos que será uma volta lenta. O nosso setor, o mais afetado, será o último a voltar. Esperamos por uma vacina, não há o que fazer. Só nos resta usar esse tempo pra criar e se preparar para o ano que vem.

EM – Então a coisa engrenou mesmo lá na gringa?

FN -
O nosso vídeo de "A Hard Days Night" viralizou e fez com que a banda ficasse conhecida nos Estados Unidos e Europa. Mas a gente tem fãs no Japão, Austrália e em todos os lugares do mundo. O mercado de blues nos EUA e Europa é muito forte e a gente conseguiu entrar. A demanda de shows é muito grande. Não fomos morar lá, mas faz parte do plano da banda. Nos Estados Unidos temos 20 shows por mês. E shows grandes.Estamos recusando shows pra ficar com a família no Brasil. É bem legal como a maneira como os americanos enxergam o que estamos fazendo, uma coisa original, fazer versões dos Beatles tocando blues. Por isso são fãs do que a gente está fazendo. O brasileiro encara mais como cover. Eles têm o blues na alma e por isso eles entendem exatamente o que estamos fazendo. Isso faz muita diferença.

EM - E como vê o descaso desse governo com a cultura do país?

FN –
Não vejo descaso desse governo com a cultura. Vejo o descaso enorme de outros governos com a cultura e com a educação. O que acho mais grave. Mas não adianta nos colocarmos no lugar de vítima e ficar reclamando. Óbvio que temos de falar sobre o assunto para que os problemas sejam sanados, com mais incentivos para a educação e cultura do país, mas temos de fazer a nossa parte. Fazendo isso as coisas acontecem. Aqui ou em outro país. Não sou de ficar reclamando, porque se a gente começar a falar, o que é que não pode melhorar? É difícil.

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